domingo, 28 de novembro de 2010

Memórias de quando não estive aqui


Um dia, eu, filho mais velho, saí de casa para estudar fora. E meus irmãos cresceram me olhando de longe. Fui o primeiro a viajar  de carona. O primeiro a morar em pensão. O que esteve em outra cidade longe da família. A primeira namorada foi minha. A primeira glória e a primeira decepção, também. Além de tudo, fui o primeiro a estar no Japão.

Claro que há um certo glamour nisso. Mas há a carga de ser o que tem a obrigação de descobrir tudo sozinho. O que não tem ninguém pra lhe orientar. Na minha vida de cigano, partir e chegar era uma constante. Como na música do Milton, partir e chegar, são dois lados da mesma moeda. Pra quem fica, resta a imagem da saída. Do outro lado da estação, há sempre os que estão chegando. É a outra ponta da história. Não me arrisco a dizer o que é melhor ou pior.

Mas o fato é que fiquei longe deles. Cresceram me vendo através do imaginário, me lendo pelas cartas e me aceitando, ou não, de acordo com o que a realidade lhes permitia. Dessa forma, terminei funcionando como um escudo, para o bem ou para o mal, das dificuldades naturais do crescimento e da convivência com os outros - os amigos ou os adversários deles.

Certa vez, um dos meus irmãos, o terceiro na escala de nascimento, se viu cercado por uma turma disposta a resolver no braço questões típicas da  adolescência. E o cerco se deu a poucos metros da casa de meus pais. Cercado, sozinho e prestes a levar uma surra, ele avistou de relance o meu quarto irmão surgir na porta da cozinha. Era o que ele precisava. Meu irmão terceiro sempre foi um sujeito safo. E não perdeu a oportunidade.

De onde estava gritou: Iram (meu quarto irmão) chame o nosso irmão mais velho (que sou eu) para me ajudar a resolver esse problema aqui. A frase mágica surtiu o efeito necessário. Houve um silêncio sepulcral, seguido de uma apreensão quase palpável na turma dos que o ameaçavam.

Meu irmão, o quarto, correu para dentro de casa como se tivesse entendido a gravidade da situação. Em busca do irmão mais velho, pensaram os outros. Meu irmão terceiro, o que estava cercado, agora era uma ilha de esperança e fé. Todo pimpão por fora. Mas sabia, por dentro, que algo não estava certo. Entretanto, contava com a astúcia do outro para se safar. Ele havia de ter uma idéia luminosa, pensava.

Não deu um minuto e o Iram, meu irmão quarto, retorna esbaforido e se planta à porta da casa. O silêncio imperava. A tensão também. No espaço daqueles poucos segundos, uma vida inteira transcorreu. Até que ele, o quarto irmão, bradou de lá: - Olha, o nosso irmão mais velho (que sou eu) não vai poder te ajudar. Ele está viajando, está no Rio Grande do Sul.

Não preciso contar que o pau comeu em dois tempos naquele dia. Na rua, da pior maneira que podia acontecer; e em casa, depois de tudo, quando os dois irmãos - o terceiro, todo lanhado, e o quarto, entre o riso e o choro, ajustaram as contas.

Até hoje, não sei ao certo qual dor me dói mais. A de estar distante e não poder ajudar ou a de não estar presente e poder cair na briga junto com eles. Hoje, a memória e a chuva me permitem rever o passado com o olhar de compreensão. A minha ausência foi presente pra eles. Nos bons e nos maus momentos.


O terceiro, é o de camisa branca. O quarto, é o de regata.
O que estava viajando sou eu, o da frente. Depois tem Isa e
Guga. E todos, um dia, andaram na minha primeira bicicleta.  


7 comentários:

  1. Maranhã, te conheço há tanto tempo mas só assim, pelo Blog para conhecer seus irmãos! Puta texto. Adorei!

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  2. Valeu, Lizoel. Tenho saudade das nossas jornadas gastronômicas. Precisamos combinar de novo. Abraço.

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  3. Delícia sempre te ler...

    Meu carinho

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  4. Maranhão, você tem a Mariana e eu a Juliana, exatamente, com o mesmo "espírito de independência" e vontade própria, desde muito pequena. Que bom que sejam assim! Bjão.

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  5. Maranhão, o beijão acima é da Márcia! Me coloque na sua lista: malves.machado@gmail.com
    Bjks

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  6. Bel,
    Que texto lindo..Você sabe resgatar as memorias com um sabor de quem ama o presente.A foto tá linda..mando bjs a todos - manos e mana!

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  7. Pois é, mano, essa tua saída de casa sempre foi, para nós, motivo de admiração, tanto pela coragem de ter enfrentado o mundo primeiro, quanto na saudade nos momentos "tragicômicos" como aquele. Beijo grande.
    P.S.: A nossa primeira bicicleta está comigo, tá?

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