terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Belô



Meus olhos embriagados

nas curvas de teu contorno

teu continente incontido

Desliza pela Savassi,

rompe o espaço urbano

E sobe mansinho a Canastra

Como se lambesse a serra

Como quem beijasse o dia

O sol nascente clareia

Teu mais sedutor desenho

Embarco em tua ausência

Perfumada e saborosa

Minha alma desavisada

É quem vaga apaixonada

Por esse teu Belo Horizonte


                                    Em homenagem aos 120 anos de Belo Horizonte. 

sábado, 25 de novembro de 2017

Mais bonito não há

Porque hoje é sábado.
Mais bonito não há.
Pode acreditar.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Nas asas da saudade


Havia tempos o Mauro Di Deus não me ligava. De repente, uma mensagem na tela do celular: "Maranhão, acabei de receber isto e pensei imediatamente em você". Abri correndo. Era um convite, ao mesmo tempo carinhoso e comovente.

Carinhoso porque permitia aos amigos mais próximos o privilégio de chegar primeiro ao prédio onde funcionou o "Mercado Municipal de Brasília", na 509 da W3 Sul, desde que foi aberto, até o último dia em que deixou de funcionar.

Comovente porque comunicava a venda de centenas de peças garimpadas ao longo de anos, por Jorge Ferreira - dono e criador do Mercado. A decisão da família era um exercício de desprendimento amoroso. Depois que Jorge faleceu, não havia como guardar tantas peças. E o melhor, no entender deles, era deixar que cada amigo, cada frequentador, comprasse e levasse consigo uma lembrança daquele lugar tão marcante da cena cultural de Brasília.

O mercado
Lembrar que o mercado fechou depois da morte do Jorge fez doer um fiozinho de melancolia no peito. De imediato, liguei pro Mauro e perguntei sobre a possibilidade de fazer um registro daquela "despedida". Ele me passou o contato do Lucas, filho do Jorge, com quem travei uma conversa emocionada.

Jorge e seu sorriso
Combinada a autorização pra filmar, fui atrás de equipe e equipamento. E percebi logo o grau de dificuldade. Descubro que Abdon e sua produtora "Canto Cerrado", meus parceiros mais comuns de filmagem, não vão poder estar junto.  A produtora fechou. Também não resistiu à crise brasileira. Foi mais um baque. Mais uma notícia triste.

Depois de várias tentativas, já tarde da noite, me dei por vencido. Não ia conseguir mesmo fazer o registro que achava necessário. A noite veio como um alento. O sono, um hiato necessário entre a angústia e a resignação.

Acordo na manhã de sábado, com previsão de um plantão na TV, a partir do meio-dia. Olho outra vez para o telefone e decido: Vou filmar, mesmo que seja com a câmera do celular. E parto para o Mercado. O restante... Bem, o restante está ai embaixo, no filme de quatro minutos, montado, editado e trilhado também no i-movie.

Algo que me deu muito orgulho de ter conseguido fazer. Pela memória do Jorge. Pela saudade do Mercado. Por tudo o que eles - Jorge e Mercado - significam para Brasília.

   



quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Achados e perdidos

Desfile de 7 de setembro, 1972. Eu, no primeiro plano,
Marcos Aurélio, em seguida.
Marco Aurélio de Figueiredo é uma amigo de infância. Estudamos juntos em Foz do Iguaçu. Eu tinha dez anos e estudamos na mesma escola até os doze ou treze anos. Esta semana, ele me escreveu através da internet. Achou uma foto da nossa escola.

O colégio.
Eram os anos 70 e naquela época, no momento da foto, a prefeitura duplicava a rua que passava em frente à escola. Bartolomeu Mitre era o nome do colégio. E fora os belíssimos anos de inocência, o que mais povoa a minha mente era a cor do uniforme: Calça bordô e camisa branca. Nunca vou saber por que se escolheu aquela cor de calça. Mas ela jamais vai sair da minha memória.

O tempo passou. Nos distanciamos. Ele foi para Curitiba e eu cai no mundo. Só voltamos a nos encontrar através da internet. Ele mora em Curitiba. E nós continuamos bons amigos. Desde a infância.

Cynthia
Coincidência ou não, hoje reencontrei, também com a ajuda da internet, outra amiga, de outros tempos de colégio, em Foz. Cynthia Pompeu Porrino.  Estudamos juntos no Colégio Anglo-Americano. Lembro que o pai dela era engenheiro e veio trabalhar na construção da Usina de Itaipu.

Nos primeiros tempos de Foz, a Cynthia morou em um hotel, perto das Cataratas do Iguaçu. Claro, era o local onde íamos nos reunir, fazer trabalhos escolares, jogar basquete, dançar. O Hotel Bourbon virou a casa da nossa turma por uns tempos.

Lembro que o nosso grupo era pequeno, mas intenso. Celi, Cynthia, Norberto, Paulão, Sálvio e eu. Depois, crescemos. Cada um tomou seu rumo. eu fui fazer faculdade no Rio Grande do Sul e de lá segui os passos que a profissão de jornalista me permitiu.

Marquinhos, hoje.

Cynthia, hoje.
Neste fim de semana, dois momentos distintos e duas imagens distantes me remeteram à infância e adolescência, ao  Paraná, a Foz do Iguaçu, aos tempos de escola. Coincidência ou não, essas lembranças só aconteceram por conta da internet e da capacidade de vasculhar o tempo através dela.

Ai, que vasculhando um pouco mais, encontrei esse filme francês que fala de um tempo em que as imagens virtuais são mais intensas do que as reais. E do risco de se perder a memória a medida em que passamos a contar muito com o fugaz.

Como um alerta: É ótimo alcançar as pessoas pela virtualidade, é delicioso rever o passado e suas imagens. Mas é absolutamente necessário reencontrar-se vivo enquanto estivermos por aqui. Marquinhos, Cynthia, vamos combinar?    


domingo, 22 de outubro de 2017

Memória bordô, escola e vinho

Fachada do colégio
O ano era 1976. Havia um quê de novidade naquele uniforme novo da Escola Estadual Bartolomeu Mitre. Calça bordô e camisa branca. Uma ousadia para os padrões da época, quando imperavam os uniformes azuis e branco. Vestir uma calça cor de vinho para ir à escola era um pequeno gesto, mas equivalia a uma imensa revolução dos costumes.

Não faço ideia de quem planejou a mudança. Mas quem quer que tenha sido, merece respeito. Pela coragem da proposta, pela quebra de monotonia que provocou em nossas vidas de estudantes, e pelo novo colorido das manhãs de segunda-feira. Era maravilhoso ver aquela multidão de meninos e meninas chegando à escola com seus uniformes de cor viva.

Eu estava lá, compondo a primeira turma da Reforma do Ensino, que instituiu, a partir dali, a nova estrutura educacional brasileira dividida em primeiro, segundo e terceiro graus. Deixando a infância pra trás e desvendando os mistérios e as delícias da adolescência.   Por uma coincidência dessas que a vida nos prega, minha mãe, Isabel, também frequentava aquela escola. Ela terminava o curso Normal e se habilitaria professora em pouco tempo.

Era bom saber que estávamos juntos, partilhando do mesmo espaço. Isabel e eu nos movíamos conforme o ritmo das aulas. Nossos grupos eram diferentes. Os meus amigos eram pré-adolescentes. Os dela, jovens senhoras, prestes a começar a vida profissional. Mas o sinal que alertava para o início da aula era o mesmo pra mim e pra ela. Da mesma forma como a sirene de perto do meio-dia era a senha para que nos juntássemos de novo e seguíssemos para casa.

Foz do Iguaçu, no extremo Oeste do Paraná, forma a tríplice fronteira que une Brasil, Argentina e Paraguai. Foi também o pedaço mais ousado da aventura geográfica que deslocou a minha família  das altas temperaturas do Nordeste brasileiro, para o Sul do país. Um contraste de culturas, um horizonte inédito, um conjunto de novidades que me fez aprender, havia vida além da ilha onde nasci.

Nosso autoexílio aconteceu por força de uma transferência militar do meu pai. O Exército queria mandá-lo pra longe de São Luis do Maranhão. Era o tempo de sair. E as alternativas eram o extremo Norte, no coração da Amazônia ou o extremo Sul, no Paraná. Chegamos em Foz juntos com o início da construção da usina de Itaipu. Eram tempos agitados. De milhares de operários e de alertas para os perigo da fronteira.

página do Jornal Gazeta Diário
Quatro décadas depois, acordo num domingo de chuva e recebo a notícia enviada por um amigo com quem estudei em Maringá, no final daqueles anos 70. Carlos Eduardo Pezzodipani hoje mora em Foz do Iguaçu. Ele folheava o principal jornal da cidade quando deparou com uma reportagem sobre os 90 anos da Escola Bartolomeu Mitre. E, lá pelas tantas, misturada a outros informações que ajudam a compor essa história quase centenária, ele se depara com um certo "Inorbel Viegas" a quem, junto com outra colega de turma, Enes Aguilar, é atribuída a criação da bandeira oficial do colégio.

Segundo o texto, a escolha foi fruto de um concurso escolar. Traído por uma memória que guardou essa conquista em uma gaveta distante, me surpreendo tanto quando o Carlos Eduardo. Talvez, um pouco mais que ele. A descoberta dominical tem o frescor de uma chuva leve, como a que cai lá fora. E pede a companhia de uma taça de vinho. O bordô do uniforme na memória agora se confunde com o vigor do alentejano, que perfuma o cristal e deixa mais viva a lembrança dos tempos idos. 

Na formatura do primeiro grau,
no Bartolomeu Mitre, com o uniforme bordô
e a companhia da professora Glória.

Hoje, o vinho tem a cor e a memória
daqueles tempos. 

sábado, 26 de agosto de 2017

Cartas de cinema

Para Mauro Di Deus
cartaz do documentário Cuba Jazz

Eu nunca fui a Cuba.
Por várias vezes, sonhei com Cuba, mas nunca fui lá. Talvez, pelo fato de ter nascido também em uma ilha, São Luis, Cuba não me seja estranha. Um pedaço de terra cercado de água por todos os lados, na definição clássica da Geografia. Eu nunca fui a Cuba. Talvez, ainda vá. Mas nunca fui lá.

Entretanto, não foram poucas as vezes que Cuba me alcançou. Em minha memória mais remota, lembro de Maria Aragão, uma comunista histórica. Médica. Maranhense, como eu. De quem ouvi meu pai falar com muita dignidade – ela cuidava de gente pobre como poucos cuidavam. E era comunista. E meu pai, militar. 


Quando saí do Maranhão e cheguei ao Sul, descobri os ícones da rebeldia juvenil que me apontavam um universo novo, desconhecido e provocante. A estrela vermelha, o charuto, a barba, o conjunto de elementos que retratava uma ideologia e muitos sonhos. Igualdade, solidariedade, fraternidade, justiça. Um pacote de novidades novas em meu ideário juvenil. 

Sempre me perguntei em silêncio contido o que o Chê fazia quando o fotógrafo fez a foto eterna dele. Sabia que estava sendo fotografado? Já se sabia ícone? Tinha noção do quanto influenciaria a juventude por décadas e décadas? Perguntas que ficaram sem resposta. E seguem ecoando no vale das memórias primais. 

Depois, pouco depois, ouvi clássicos de uma música que tinha molejo e me alcançava por dentro, num sentimento que mesclava melancolia e tesão. Pablo Milanês e Milton; Chico e Silvio Rodrigues traduziam uma mistura sonora inédita e íntima. Os meus ídolos daqui e os de lá se entendiam bem. Como não os compreender? Por que não considerar seus valores, sua poesia? Sua história?

O médico que fez o nascimento de Mariana e Gabriel, Paulo Correia da Costa, era um comunista histórico. E era uma delícia conversar com ele e desfrutar de seu conhecimento, de sua amizade, de sua companhia. 

Jamais esquecerei a cena de Paulo, entre as mesas do bar da Tia, em Campo Grande, simulando ter duas maracas nas mãos, fluindo leve, por trás dos óculos de fundo de garrafa, ao som de uma rumba. Um cubano en la noche de la vieja Habana. 

Depois o discurso, longo discurso de Fidel foi esmaecendo. Depois veio a enxurrada de informação, depois veio a dúvida. E com ela, um mar de incertezas. E quem disse que as certezas são necessárias. A poesia, sim. 

E foi a certeza da poesia, embalada pela música, que me levou de volta a Cuba, sem que eu nunca tivesse estado por lá. Quando Mauro e Max me alcançam as primeiras cenas de “Cuba Jazz” havia ali uma Cuba cheia de amor e contradição. Sem que uma precisasse vencer a outra. 

Max Alvim e Mauro Di Deus
Torna-se fácil perceber que a riqueza de tudo vai bem além das ondas que quebram, ao mesmo tempo, fortes e ternas nos muros limites que nos lembram – é ilha, não continente. Entre o mar e a terra, entre a luz e o continente há um novo e generoso brilho carregando a essência de um povo que nunca se perdeu no isolamento. 

É quando enxergo em Cuba a Madre Deus do menino que não sai de mim. É quando me emociono com o suor e o sorriso da baterista negra que invade o tambor com a intimidade de um carinho feminino, língua quente em metal rijo, boca de mil dentes brancos, sorriso de quase nuvem. Como não se apaixonar? 


Meus velhos espíritos reencarnando inteiros. Ah, Maria Aragão; ah, Paulo Correia da Costa. Eis ai a prova de que Einstein tinha alguma razão. Tempo e espaço são bem mais que uma dimensão. A nova geração da música cubana desconhece limites, ignora fronteiras, não se rende a bloqueios. 

E trafega em alta velocidade pela ponte arquitetada nas lentes incontroláveis de Mauro e Max. Que são dois, mas que podiam ser um só. Que conduzem com maestria, sem qualquer sinal de desculpa uma nova linguagem documental. Cuba jaz? Bem capaz! Cuba Jazz.

domingo, 21 de maio de 2017

Poesia da pergunta, utopia da resposta


O domingo amanhece cheio de neblina lá fora. Volto meus olhos pra dentro. De casa. De mim mesmo. Minha alma pede corrida. Meu corpo, preguiça. Volto pra cama e me cubro com um lençol fino. O pouco frio que faz exige coberta, mas não cobertor.

Penso no cobertor azul que minha mãe me deu. Ainda não veio frio pra ele. Mas virá. E ao lembrar do cobertor azul que minha mãe me deu, lembro da conversa que tive com ela ontem de manhã. Minha mãe, uma senhorinha que anda a beirar os oitenta, torna-se cada dia mais doce. A ponto de me fazer dúvidas. De onde mesmo vem a minha paixão por poesia? Do meu avô? Do meu pai? Ou, agora, olhando melhor, de minha mãe?

A resposta é que, talvez, minha poesia tenha os três como origem. Minha mãe anda aproveitando cada conversa ao telefone para fazer poesia. Ontem, foi assim. Conversávamos sobre o Brasil torto. Sobre o mundo torto. Sobre as tristezas que assombram este início de Século XXI.
Isabel, seu sorriso e sua poesia.
Comentando a fuga do empresário que gravou o presidente, combinou com o judiciário não ser preso, embarcou num jatinho e desembarcou em Nova Iorque, minha mãe se volta para um desejo tardio com frescor de infância. A conversa muda. "Como eu gostei de conhecer aquela cidade, andar por aquelas ruas. Se tivesse condições iria morar lá, também."

Começo a rir aqui comigo e alimento o sonho de minha mãe com uma outra lembrança. A do irmão dela, meu tio Zé Raimundo. Provoco. "Ah, mãe! A senhora falando assim me lembra o tio Zé. Ele adorava viajar no imaginário. Fazer planos de percorrer o mundo em viagens que nunca aconteceram, senão na ideia dele. E eram viagens saborosas. A senhora pelo menos deseja em bases reais. Esteve lá em 'Noviorque', "  

Isabel embarca firme na provocação e vai mais longe. Passa, num zás, a uma conversa confessional e poética. Diz que sente saudade dos irmãos, se pega pensando em conversas que não teve com eles. Querendo saber coisas de seu pai, de sua origem. "É uma pena que eu não tenha conseguido perguntar coisas que eu hoje gostaria de saber, sobre o meu pai." E passa a descortinar memórias de menina surpreendida com utopias passadas e presentes.

"Hoje imagino que meu pai sabia ler. E como? Como é que ele, um homem nascido no interior, num tempo em que não era comum ter acesso à escola, aos livros, sabia ler? Penso nisso e me encho de vontades de saber coisas dele que ninguém mais pode responder."

Isabel embarca em sua viagem memorial.
Fico ouvindo comovido, do lado de cá da linha telefônica. E estimulo a curiosidade pra saber por que ruas seguem os caminhos de sua mente: O quê mais a senhora queria saber mãe? Dos irmãos homens que tive, só Cândido ainda está vivo. Talvez ele tenha algumas dessas respostas. Preciso ir a Fortaleza conversar com ele. Mas lá está dando um surto de zica e Chicungunia. Por enquanto, não vou lá.

Mãe, não precisa ir lá pra ouvir essas respostas. Ligue pro tio Cândido, peça a ele que ponha um copo d'água por perto, ou uma cerveja gelada, ou uma cachacinha, porque a senhora vai fazer uma longa conversa com ele. E pergunte o que quiser, pergunte tudo. Aproveite o seu tempo e o dele. E viagem, juntos, as viagens que a imaginação lhes permita. E percorram os caminhos passados do vô Evaristo. E se emocionem, e poetizem.

A voz de minha mãe ecoa ainda em meu ouvido. Uma mulher em busca de sua origem. Sem tirar os olhos do horizonte. Com os receios típicos desse nosso tempo insano, mas sem perder de vista uma utopia transformadora. A origem e o horizonte de minha mãe espantam a preguiça do domingo e me tornam ávido pelas teclas de meu computador. Aqui estou e como há neblina lá fora, abro a janela do mundo pelo ecran de quatorze polegadas à minha frente.

E topo com um vídeo depoimento de um dos meus escritores preferidos, Eduardo Galeano. Como minha mãe, penso nas minhas origens e nas perguntas que gostaria de ter feito a Eduardo. Algumas respostas tenho a um clic. Clico. A tela se abre e ele, que morreu não faz muito, aparece mais vivo e atual do que nunca. Falando de medos paralisantes, de amigos, de poesia, de passado, presente e futuro. De utopia. São nove minutos e pouco que ganham o meu dia. Que me preenchem o vazio provocado por essa melancolia brasílica.

Minha origem, poesia e utopia. 
Ande, minha mãe! Ligue logo pro tio Cândido. O melhor da poesia das perguntas é a utopia das respostas.        

sábado, 13 de maio de 2017

Mar de saudade, barco imaginário

Um barco imaginário, a Baía de São Marcos,
memórias do Bela Rosa e de meu avô, Opílio.  

Acordei pensando em meu avô, Opílio.
Desde antes, venho pensando nele. Há dias.
Sei, não faz muito sentido. É véspera do dia das mães, não dos avôs.
Mas, que importa? O pensamento é livre. Penso nele e pronto.

Meu avô era dono de barco. Um barco que só imaginei, a partir do que me contaram. Não tive idade pra ver o mar da baía de São Marcos bater provocante em seu casco. Nem pra sentir o vento de proa soprar no rosto dos barqueiros que se metem a enfrentar o mar aberto. Cantiga de marinheiro, poema de maresia. 

Mas as histórias dele, o Bela Rosa, as poucas que ouvi, me são suficientes para fazê-lo um barco encantado. Foi por um tempo desejo, diversão e ganha-pão do "seu" Opílio. Um barco de aventuras comerciais. Meu avô tinha um pequeno grupo de marinheiros comandado pelo irmão dele, Gregório Viegas. 

A cada travessia trazia coisas do interior. Do continente para a ilha de São Luis.
Vinha de Alcântara, onde meu avô nasceu e se criou. Horas depois de vencer o banzeiro, aportava na Praia Grande ou no I'Bacanga. Portos de desembarque, cheiro de peixe, de frutas, de comida da terra. Gritaria colorida, fuzarca de gente simples, idas e vindas constantes que faziam as segundas parecerem domingos de festa. 

Até um dia em que a notícia chegou primeiro que a carga, primeiro que o barco: Uma rajada de vento quebrara o mastro, deixando a nau à deriva, em alto mar.
Opílio sempre foi um homem prático. Se o mar quer levá-lo, é porque não é mais meu. Mas o convenceram a resgatar. Corda, reboque da marinha, lá se foram mar adentro, sob o olhar atento de Gregório, o capitão. 

Meu pai é quem me conta. Avistaram o barco depois de horas de navegação. Mas o reboque não tinha como chegar tão perto. Gregório amarrou uma corda na cintura e pulou no mar. Nadou contra a corrente até alcançar o Bela Rosa. 

Rebocado, mastro quebrado, parado na Praia Grande sob o olhar de meu avô e seus marinheiros. Foi como uma despedida. Meu avô vendeu o que restou do Bela Rosa ao primeiro que lhe fez uma oferta. 

Imagino meu avô caminhando de volta para a Madre Deus. Alpercatas de couro, calça de linho branco, camisa aberta à altura do peito, cabelo cuidadosamente alinhado, o galego aventureiro ganha a rua de São Pantaleão, entra na Rui Barbosa pensando na próxima investida. Antes de chegar em casa, passa na banca de "seu" Sanclaire. Aposta uns trocados no Galo. E espera pacientemente o fim do dia, quando viria buscar o produto de sua "fé". 

Meu avô nunca perdeu uma aposta.

O "velho Lobo do Mar", Opílio Viegas, comigo.
Priscas eras.  Saudade. 

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Até que sejamos pó

* Por AnDERsoN RiBEirO


Sempre achei que poder atravessar a rua era ser independente. Independente nas vontades como querer determinado biscoito e comer depois porque não tinha fome naquele momento em que todos estavam reunidos à mesa. 

Atravessar a rua era bem ensinado, explicado, vigiado. Olhe para todos os lados! Diziam. E assim se pagava micos; pois olhar todas as direções; inclusive para cima e para baixo, mesmo ‘sabendo’ que carros ou outros veículos jamais poderiam vir dessas direções. Era obrigatório para mostrar que realmente havia aprendido a lição mais importante da empreitada. 

Depois era a noção de tempo, espaço e responsabilidade. Como atravessar a rua sem que passe por perto a possibilidade de ser atropelado. Só atravesse quando não vier nenhum carro! E assim se passa pelo segundo teste, ainda que corra um pouco pra conseguir e seja repreendido por não deixar a rua ficar completamente deserta. 

Depois das provas, era hora de realizar favores. Comprar um ingrediente do almoço que faltou, urgentemente, na mercearia. Ir ao armarinho, armazém, feira, supermercado; pagar contas que estão por vencer; levar qualquer coisa na casa da avó e outros parentes e amigos, ir à escola sozinho, mas jamais, em hipótese alguma, ir a festas sozinho. Ah! Esse é outro teste e a independência vai ficando mais distante. Depois de adulto a independência toma outras proporções. São muitas provas até ‘ganhar’ o próprio dinheiro e perceber que a independência nunca chega... Que independência é atravessar uma vida inteira. 

*Anderson Ribeiro é um dos novos/velhos amigos que acabei de encontrar. A vida é assim. Pronto. 

sábado, 1 de abril de 2017

O som da mansidão



Caro amigo, Mário.
Meu maestro soberano, Lula.

Escrevo agora, depois de ter conseguido espaço e tempo para
digerir o som da noite de quinta. De quinta, nada, som de primeira,
noite de primeira.

Tudo contribuiu para uma noite de reencontro de amigos. Chuva, lá fora;
calor humano em farta monta, num espaço acolhedor, confortável e
harmônico. 

Meu abraço em Dona Isaura, na entrada da casa, foi mais do que um desejo de
boas-vindas. Foi como se tivesse abraçado cada um dos seus filhos e netos que compunham a cena, no palco. Ela estava radiante.
E não era por menos. Não haveria de ser.

Macarrão e Armando não são filhos, mas é como se fossem. No mínimo, irmãos. 

A música que sai da cabeça de vocês, antes de chegar aos nossos ouvidos, passa - inevitável - pelo coração. Quando chega aos instrumentos, vem carregada de um sentimento puro, de emoção viva, de raiz. Uma mistura bem dosada da brisa carioca com o ar das montanhas dos Geraes.

Recorro a Caetano pra dizer que encontrei ali "Miltons, Tons e seus tons geniais".
E chicos, e Edus, e Mários e Lulas...

Senti um orgulho besta de ver pais e filhos dividindo o palco, a luz e a inspiração.
Gabriel e sua troca de olhares com Lula revela intimidade única, que vai além dos teclados. Nos teclados, aliás, é quando a sua timidez explode em qualidade sonora.  

Artur (é assim que se chama o filho do Mário, né? Se não for me perdoem, mas falo do filho do Mário.) tem uma voz aveludada e comovente. Tão linda que faz esquecer o senho fechado e os gestos mínimos. Seu corpo é sua voz. E sua voz é tudo. Ponto. 

Julinha merece um beijo especial. A menina brasileira desabrochou mulher, na França, e voltou pra ocupar seu espaço. 

Um show de mansidão.
Obrigado pelo som de primeira, na noite de quinta. Som da mansidão. 

Um abraço.  

Maranhão Viegas 

Carta escrita ao Mário e ao Luiz Theodoro - este último, a quem me permito chamar de "meu maestro soberano - depois de assistir ao show de lançamento do primeiro CD de Mário Theodoro, na noite de quinta-feira, 30.03, no Teatro dos Bancários, em Brasília.

domingo, 12 de março de 2017

1979 = infinito





1979.
Somados, os números que compõem essa data resultam no número 8. Querem ver? 1+9 = 10 +7=17 + 9 = 26. 2 + 6 = 8.  O 8 deitado - ∞ - se traduz no símbolo universalmente reconhecido como o infinito.

Talvez esteja ai no resultado dessa “equação” a mágica que fez um grupo de adolescentes inaugurar, em 1979, uma amizade do tamanho do infinito. Algo que começou há 35 anos e não tem data para terminar. Pois, essa é a nossa história. Os amigos que compõem a turma do Terceiro B, do Colégio Marista de Maringá são especiais. 
Ali havia filhos de imigrantes japonês, italianos, descendentes de espanhóis,  de portugueses, de nordestinos... aquela turma era um pouco do Brasil miscigenado. Aos poucos, descobrimos que éramos diferentes dos outros “terceiros”. Nem melhor, nem pior, mas diferentes em quase tudo. Primeiro, porque tivemos a sorte de ter um professor quase da nossa idade, que nos provocava o tempo inteiro.



Ele, Luiz Roberto Evangelista, pra nós sempre foi o “Pirulito”. Por dedução, conclui-se que ele tinha a cabeça avantajada em relação ao corpo franzino. O Luiz foi um dos primeiros a perceber que éramos especiais e nos conduziu a um caminho também muito especial. Por provocação dele, criamos o primeiro Clube de Filosofia do Colégio, em toda a sua história. Dessa forma, de uma hora pra outra, passamos a conhecer e conviver com o pensamento (pra nós, inédito e em alguma medida incompreensível) dos pré-socráticos, de Platão, de Kant, de Friedrich Nietzsche e de muitos outros.


Nossos retiros na chácara dos maristas eram muito mais que espirituais. Eram de corpo e alma. Éramos a juventude no seu melhor e mais inocente frescor. O amor era uma constante em nossas vidas e vinha em forma de poesia, de paixão platônica, de desejos inconfessos, de pequenos olhares, de beijos contidos, de toques de mão. O amor, vinha em forma de música que escutávamos todos juntos. De preferência, música brasileira.

Ah, as tarde nas casa de Olívia, mãe de Mariza, eram memoráveis.  Havia lá uma cozinha maravilhosa, que sempre nos abastecia o estômago com um carinho qualquer, em forma de sabor da culinária italiana. 

Mas havia também algo que nos atraía muito, uma coleção de discos de MPB que pertencia à irmã de Mariza, Heloísa, e que era o nosso guia para o mundo mágico das artes e da contemporaneidade.
Então, amávamos explícita ou platonicamente as nossas meninas. E elas, a nós também. E quando a dor de amor era demasiada (porque havia dor de amor também, claro!), havia sempre um prato quente e bem feito por Dona Olívia, para nos ajudar a afastar a angústia da alma, saciando o vazio do estômago e, por tabela, do coração.

Comida, aliás, nunca foi o nosso problema. Havia os doces da Dona Clara, mãe do Ricardo Sandri; a comida mineira da Dona Marilene, mãe da Edna; os sabores lusitanos da casa da Dona Rosa, mãe do Eduardo Esteves; e os lanches na casa da Dona Shirley, mãe da Alverina.  



Andávamos em bandos, mas o nosso bando era gentil e surpreendente. Nas olimpíadas escolares, tínhamos camisetas especiais, torcida especial, times em todos os estilos de competição. Não me lembro de termos tido um desempenho capaz de inscrever nosso nome no panteão da glória esportiva maringaense, mas também não me recordo de termos envergonhado ninguém.

1979. Aquele ano mágico (e infinito) de nossas vidas era ano de encontros, mas também de despedidas. Nos despedíamos da nossa meninice. A vida profissional se avizinhava, embora nenhum de nós, salvo raro engano, tivesse bem definido, com clareza, aquilo que queria mesmo da vida.
Tínhamos uma noção de que bem ali a vida fechava um ciclo e começava outro, naquele exato instante. Não tínhamos ideia do quê viria pela frente, mas o que quer que fosse, era desafiador.

O certo é que ninguém combinou, mas aquele ano de 79, aquela turma do Marista de Maringá, fez um acordo tácito, através do olhar – onde quer que estivéssemos, um dia voltaríamos a nos encontrar. Ninguém sabia se aquilo seria levado a sério, mas foi.

A vida permitiu a muitos de nós que os caminhos se cruzassem. Nos juntamos pela primeira vez, quinze anos depois da formatura e foi delicioso. Demoramos mais um bom tempo para fazer uma nova “juntada” e foi bom, de novo. E agora, aos 35 anos completados de nossa turma, nos reunimos uma vez mais.



Nosso corpo nos traduz como “jovens senhores e senhoras”. Uns, com menos cabelos sobre as cabeças, outros com uma cinturinha avantajada, alguns já grisalhos... As meninas, não! Para elas, o tempo quase não passou. Elas continuam carregando aquele perfume que tanto nos encantava, nas tarde de música e poesia. Mas nossa alma, a de todos nós, sem distinção, continua juvenil. E isso, em boa parte, é o que continua a nos fazer “especiais”.

Se é verdade que a coincidência da “equação” nos deu de brinde um tempo infinito, também é verdade que o maestro dessa alquimia se chama Luiz Evangelista. É em função dele que gira a nossa união. Por ele e com ele, seguimos a nossa jornada – ainda que cada um esteja em latitudes ou longitudes distintas.

No último dia 15, reunimos 20 dos quase 40 alunos da turma de 35 anos atrás. E o Luiz nos deu “A aula de física quântica que não tivemos em nossa vida”. As fotos desse encontro traduzem um pouco da nossa emoção. 

A reportagem da TV também.



Cartas à Constituinte - Trinta anos depois

Ulysses Guimarães caminha sobre a rampa do Congresso.
Quando fevereiro começou, lembrei da data: Trinta anos de instalação da Assembleia Nacional Constituinte. E lembrei, também, que dez anos antes, quando estava na TV Senado, dei uma pequena contribuição na produção de um material sobre as "Cartas que foram escritas à Constituinte". 

Ulysses e a "Constituição Cidadã"
Foi dai que surgiu a ideia de tentar identificar pessoas que viviam no Distrito Federal, à época, e que tivessem também mandado sugestões à Constituinte. Foi um trabalho de garimpagem. Localizei 50 cartas (há mais, mas parei por ai). Já tinha um número que julgava suficiente para o trabalho e, com um pouco de sorte, localizaria entre essas cartas garimpadas alguém para relembrar a história. O desafio seguinte foi pedir à produção que tentasse encontrar alguém que ainda estivesse por aqui. Um trabalho tocado com maestria e persistência pelo amigo Oussama El Ghaouri Filho.  



Um a um os endereços originais foram verificados. Das cinquenta cartas, nove autores foram localizados. Destes nove, apenas dois toparam participar da "crônica de sexta". Foi uma vitória. Ver uma ideia que nasceu despretensiosa tomar forma, sair do papel e virar realidade. Para ajudar a contar uma história de um Brasil dos sonhos, nestes tempos em que mais comuns são os pesadelos. Eles não sabiam, mas nós levamos uma reprodução em cores das cartas originais. Por isso, a emoção do reencontro é absolutamente original. 

Suely Martins e Maranhão Viegas
Compartilho com vocês o resultado do trabalho levado ao ar ontem, sexta-feira, 10/03, no Repórter DF - telejornal pelo qual estou responsável - e, em rede nacional, pelo Repórter Brasil. 


Este material tem muito significado, também, porque  marca o meu reencontro com o lado da frente das câmeras - coisa que não acontecia havia pelo menos vinte anos.