terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A vida não para

O quê aprendemos em 2020? Há quem tenha centenas de respostas para essa pergunta. Há quem não tenha nenhuma. A última edição de 2020 do “Caminhos da Reportagem” lançou-se ao desafio de ir em busca de quem quisesse falar sobre a experiência de viver um ano em que a pandemia foi o protagonista e nós, coadjuvantes. 

Não por acaso, encontrou gente sofrida, gente preocupada, gente com alguma medida de medo e tristeza. A conversa reuniu no espaço de um programa uma monja, dois professores, um neurocientista, dois médicos, uma mãe e uma trupe circense. O circo deu a linha e o pensamento se encarregou da costura. Embaixo da lona, ou fora dela, a vida é sempre um espetáculo. 

E foi com a sensação de viver um espetáculo circense que as respostas foram surgindo, de forma natural e certeira. Algumas conclusões foram inevitáveis: Tudo passa. Inclusive a pandemia. E o mais importante: A vida não para. 

Ficha técnica
Reportagem: Maranhão Viegas
Produção: Gracielly Bittencourt
Imagens: Rogerio Verçosa
Edição de texto: Francislene de Paula
Edição de imagens e finalização: Jerson Portela e Rivaldo Martins
Arte: Eudes Lins



domingo, 29 de novembro de 2020

Don Diego

Capa do jornal Crônica, de Buenos Aires,
em 26/11/2020


bola de meia
bola de gude
do grude na bola
sem hora
sem meia

bola na areia
no barro
na chuva

pelota
miúda
en la calle
suscia

alejo estás ahora
mirandome
desde arriba
tu nueva morada
blanca nube
cielo azul

el mas divino
ser humano
el mas humano
ser divino

tus passos
ayer en la cancha
ahora 
bailan como
alas bienditas

 tiempo
passado
traspassado
eterno

hasta siempre!
Diego

domingo, 1 de novembro de 2020

Das horas úmidas de meu pensamento

     


As horas do domingo escorregam lá fora. Pela janela acompanho um chuvisco. Que não sabe se vai ou se fica. As horas escorregam lá fora. Aqui dentro observo a tua dor fininha, a tua alegria, a tua desvontade de fazer algo que exija mais do que sair da cama.

Minto. Quando abri os olhos de manhã, foi o cheiro de café quem me tirou do sono. Me invadiu as narinas e me trouxe de volta à vida real. Sabor de pão com manteiga invadindo uma manhã que ainda se disfarçava de madrugada.

Estavas ali. E num instante, estavas por cima de mim. Tua renda preta roçando meu peito e me chamando para levantar. Como? – eu me pergunto. Teu corpo sobre o meu é um convite para ignorar o tempo, para derreter-se em carinho e perder-se entre os lençóis. 

Um beijo. Um espreguiçamento. E o corpo se move em direção à janela. O amor em cheiros imaginários tem o seu valor. Lá fora, já desde cedo, as horas úmidas passavam. O asfalto molhado. Os pássaros aquietados. Só alguns poucos se arriscavam num canto suave e molhado. Domingo de horas passantes. Lentidades.

Então veio a mesa. Ah! Nossa mesa sempre está em flor. Pode faltar manteiga (melhor que não falte), mas não faltam flores. As flores me levam pra outros rumos. Lembram as coisas que já vivemos. Lembram as ruas floridas de Santiago, no dia em que dançamos enquanto uma orquestra jovem soltava seus acordes clássicos e populares em troca de aplausos. E nós, lá no meio, admirados e felizes, nos permitimos um tango. Que inveja sentiram alguns de nossa liberdade.



As flores tem o dom de fazer isso comigo. O leite em pó torna o café moreno. O açúcar é minha perdição. Ovos revoltos, pão. E um riso que não se mede. Sim. Essa é a fórmula de nossa mesa matinal, em um domingo de quase chuva e quase frio. E as hora lá, passando umedecidas, do lado de fora da janela.

Conto uma velha piada que te faz sorrir. Sempre. Sabe, preta, em Portugal há um grande índice de consultas aos oftalmologistas depois do pequeno almoço. E nem preciso seguir para que espalhes os teus dentes adiante do contorno dos lábios e dispares em uma gargalhada. Um muxoxo. A piada é velha. E, ainda assim, te faz gargalhar.

Falamos da vida, com suavidade e ternura. Falamos dos erros cometidos em explosões que revelam o nosso cansaço e o nosso limite. Quando, meu Deus, nos veremos livres outra vez? Não há tristeza em nossa voz. Há uma constatação firme, circunspecta, consternada de que o horizonte não nos mostra ainda um ponto final para essa dor pandêmica.

Compramos vinhos e fazemos planos. Os vinhos aplacam as dores e dão sabor à alma. Por isso, os temos e os tomamos. O que vai ser desse dia? O que vai ser desse tempo? Quem contará essa história e de que forma isso vai acontecer? Tantas perguntas sem resposta. Tanto vazio no ar para um domingo que vai deixando as horas escaparem pela janela úmida. Não sei. E não sei se saberemos.

Sei apenas que nosso barco segue lento e constante em direção ao que vai no leme de nossas cabeças. Via láctea brilhante e intensa como a que vimos deitados lá fora, no tempo, naqueles dias de Pirenópolis. Navegar impreciso. Preciso. Necessário.

 
Lembras dos pães de Bismarque? Das músicas de Chico Filho. Dos chapéus de Cabocla. Lembra? Por favor, não esqueças. É a memória desse tempo que ainda nos manterá vivos e eternos.

Na mesma da hora, quando a chuva deu uma trégua e a janela se iluminou com uma nesga de sol, era o sinal: Caminhamos?



sábado, 24 de outubro de 2020

O mundo é uma bola


 

Em 1970, eu tinha oito anos. Lembro vivamente a imagem de um homem magro, calçando um Conga (uma das poucas marcas de calçados esportivos à época no Brasil), calção azul e camiseta regata amarela, correndo pelas ruas da minha Madre Deus, com uma bandeira do Brasil nas mãos. 

 

Olhei intrigado. Intrigação de menino. Por que ele está fazendo isso? Perguntei à minha avó. Pelé. Ela respondeu. E seguiu falando, depois de uma pequena pausa. Pelé ganhou a copa do México. Era 1970. E eu nunca esqueci aquela cena. 

 

Depois, acompanhei ao largo, encantado como um súdito, a trajetória do Rei do Futebol. O mais legítimo que o Brasil já teve. Fazia com a bola o equivalente ao que Platão, Sócrates e Nietsche fizeram com o pensamento. Um Einstein dentro das quatro linhas da relatividade futebolística. 


Foto: Assessoria CBF
Foto: Arquivo CBF

Faz oitenta anos que ele nasceu para ser rei na eternidade. Neste 23 de outubro, todos se rendem à evidência que seus pés comprovaram, cada vez que a torcida assistindo a um espetáculo gritou “gol de Pelé”: o mundo é uma bola.  


quinta-feira, 25 de junho de 2020

Diário de pandemia - Nossa língua portuguesa

Moisés Rabinovici
Já faz algum tempo, meus dias começam com o Moisés Rabinovici me enviando, pelo WhatsApp, as manchetes diárias dos jornais do exterior. Rabino (como a intimidade recém conquistada me permite chamá-lo) é um correspondente internacional de longa vivência e expert em Oriente Médio, que tornou-se próximo a mim por conta do trabalho conjunto, na TV Brasil.

Além de traduzir as manchetes internacionais ele as contextualiza, nos fazendo acreditar ainda mais numa versão pessoal do dito popular que sentencia: "Para bom entendedor, uma manchete basta".

Pois hoje, entre as tantas manchetes enviadas estava a da edição impressa do jornal português "Diário de Notícias".

"PAÍSES ENCOSTADOS AO TURISMO VÃO PASSAR AS PASSAS DO ALGARVE"

Li e reli sem encontrar o sentido. Corri os olhos para o restante do texto e percebi que o Rabino, prevendo a falta de entendimento, traduziu a manchete do português de Portugal para o português brasileiro.

"PAÍSES QUE DEPENDEM DO TURISMO PASSARÃO DIFICULDADES ECONÔMICAS" 

Na hora, mandei-lhe uma mensagem:

Querido Moisés Rabinovici. Sua providencial tradução do português de Portugal para o português do Brasil é um pequeno exemplo do oceano que distancia nossa “Língua Pátria” da língua da nossa “Pátria avó”.

Passa um tempo e ele me devolve a escrita: "Pro rádio, ninguém entenderia a manchete do Diário de Notícias, sem tradução. Trabalhei, quando no Oriente Médio, para a rádio portuguesa Renascença. Lá eles me apresentavam, para não passarem vergonha, como o "Brrrasileiro do Medio Oriente". Todo dia recebia da produtora as mancadas que tinha dado. "Seu burro: reunião de cúpula é cimeira; israelense, iasraelita; palestino, palestiniano...". Participava de um programa de entrevistas aos sábados com um título ótimo: "De Fio a Pavio".

São essas diferenças que nos tornam únicos. Nos distanciam e, ao mesmo tempo, nos remetem à nossa origem mesma. Filhos nascidos de uma só raiz.

sábado, 13 de junho de 2020

Diário de Pandemia - Crônica de sexta 12.06.2020

O amor prevalecerá. 
Nas coisas mais simples. 
Um café com pão e manteiga. 
Um sorriso por trás das máscaras. 

Um afago. 
Um carinho. 
Um cuidado. 

O amor prevalecerá no abraço, 
depois que o isolamento passar. 
O amor prevalecerá 
porque esta é a condição humana. 
Amar. 

Não fosse isso, seríamos nada. 
Seríamos o vazio existencial. 
A terra seria estéril.
E dificilmente, haveria pólen suficiente para 
o labor indispensável das abelhas.

Por isso, e porque não há o que justifique 
alguém no mundo nascer para a solidão, 
o amor prevalecerá. 
Ponto inicial. 

sábado, 6 de junho de 2020

Diário da Pandemia - Crônica de sexta 06.06.2020

Cronica de Sexta, escrita originalmente para o Repórter Brasil, da TV Brasil. Todas as imagens foram captadas por um i-phone 7, entre os dias 01 e 5 de junho de 2020. O texto contrapõe a pressa do tempo e a lentidão das horas. A edição é de Carlos Aguiar (Bazooka).

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Diário de pandemia - 01.06




HAI CAI DO SILÊNCIO

LONGO CAMINHO
SILÊNCIO A TEU LADO
CALADO E SÓ



HAI CAI DA DOR

TEMPO ESTRANHO
CORAÇÃO DOLORIDO
CHORO CONTIDO





HAI CAI DO ALÍVIO

POR HORA SOFRO
A NOITE SE DESENHA
E A DOR SE VAI





sexta-feira, 15 de maio de 2020

Diário de pandemia - MÚSICA NO VARAL


Foto: Maranhão Viegas 

A TARDE NEM COMEÇAVA
NO CÉU HAVIA UM SINAL
NOS FIOS COMO UMA PAUTA, 
UMA CIFRA MUSICAL

UM BANDO DE PASSARINHOS
EM CANTIGA SEMINAL
LONGE DOS DRAMAS DO MUNDO
ENFEITANDO NOSSO QUINTAL

DESCANSAM EM BREVE PARADA
COISA DE NÃO TER HORA
PLANEJAM VOOS RASANTES
PRA PASSAR DEPRESSA O AGORA

QUE AGORA NÃO TEM MAIS JEITO
ESTÁ DESFEITO O QUE FOI
MAS LOGO VEM BOA HORA
E A TRISTEZA DESSE TEMPO
A GENTE MANDA EMBORA


domingo, 10 de maio de 2020

Diário de pandemia - domingo - 10.05.2020

Puçás



A vida inteira vi meu avô tecendo redes de pescar. Puçás, como se chamam essas redes em Alcântara, lugar de seu nascimento, no interior do Maranhão.

Era um ritual contínuo, cadenciado e silencioso. As mãos íam e vinham, num bailado suave e preciso. Enquanto as horas passavam nas tardes de meu avô. Linhas de náilon, aos poucos, tomavam forma de instrumento de pesca. A transparência do novelo, a dança certeira e ritmada da agulha,  carecia da destreza do pescador para vencer o jogo com o mar e tirar dali o alimento, em forma de peixe. Pequenos milagres cotidianos.

Nunca vi meu avô lançar uma rede ao mar. Mas nunca foi preciso ver.

A exatidão dos nós ao tecer, a firmeza das mãos naquelas linhas, me davam a certeza de que havia ali um entendido de marés.

Meu avô passou boa parte  da vida longe do mar.
Hoje, tenho a consciência de que o mar nunca se afastou dele.

Opílio Viegas, meu avô.
No nosso último encontro em sua ilha, São Luis. 

domingo, 3 de maio de 2020

Diário de pandemia - Deus é que sabe



Que dia é hoje?

A pergunta tornou-se usual, frequente, persistente, insistente, nesses dias de pandemia. É como se tivéssemos perdido a noção do tempo. E acho mesmo que perdemos. Em tempo de pandemia, vamos descobrindo como é viver o comedimento. Sobreviver com o pouco, reconhecer e respeitar os limites. 

No caso do tempo, tenho a sensação de que abrimos mão, sem querer, do calendário. Tornou-se obsoleto. Ou, adotamos por descuido, quem sabe, necessidade, uma versão mais simplificada. Meu tempo agora, por exemplo, cabe muito bem em três estágios: um ontem, um hoje e um amanhã. Agradeço e dispenso o excesso. Me encaixo ao resumo. Um tempo desmedido, sob medida.  

Está mais curta a respiração (mais anchos só mesmo os suspiros). Estão mais curtos os passos. Os gestos, menos efusivos do que foram a vida inteira. Acabrunhamos. Nos reservamos a distância medida. Nos abraçamos com olhares. Nossos olhos por trás das máscaras resguardam sorrisos e choros. Por vezes, entristecemos; por vezes, emocionamos. 

Volta e meia me assalta a pergunta: Que dia é hoje? E meu pensamento voa.  

Podia ser um dia qualquer. Com o sol brilhando lá fora. Com pássaros invadindo a manhã. Com as ruas cheias. Enxames de gentes e carros. Alguém tomando decisões. A vida virando do avesso. Um dia com flores no jardim, água corrente, balão solto no ar, velas ao vento e bicicletas na ladeira. Um dia qualquer. Um domingo qualquer.

Sem resposta imediata, abro a caixa de mensagens. Brilha um sinal. Tem nova. Roberto Além Rojo, meu compadre, cineasta boliviano, que foi pego de surpresa pela pandemia no coração da África, me manda poesia em forma de imagem. 

Mal sabe ele, com uma possibilidade real de resposta à minha pergunta: que dia é hoje?
Na imagem que recebo, homens expostos ao mar azul do Pacífico, ocupam um barco onde se lê a resposta que peço, quase em oração: "Deus é que sabe".


domingo, 19 de abril de 2020

Diário de quarentena - Porque nem tudo é só tristeza

Hoje é domingo.
Os domingos pedem música. E, também, poesia.
E a receita pra espantar a tristeza imposta pela pandemia não podia ser outra: música e poesia.

Tempos atrás escrevi uma poesia. Marcos Mendes e Maria Cláudia, grandes amigos dos tempos em que vivi em Mato Grosso do Sul, mantêm um canal de música na internet (os dois são intérpretes e compositores, da melhor qualidade) e resolveram musicar a poesia que fiz.

O resultado está ai. Eu agradeço, comovido, aos dois e dedico a música a Patrícia Leite.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Diários de Quarentena - Acabou Chorare

Morou, Moraes? Se não morou, não mora mais.


O velho adágio popular brasileiro me vem agora à cabeça. Não sei exatamente por quê. Talvez, pela sonoridade poética. Talvez, pela casualidade da rima. Talvez, pela mistura com o nome do Moreira que acaba de nos deixar. Moraes Moreira, o novo baiano mais autêntico, o que está na gene, na formação primal do grupo "Novos Baianos". Sim, Moraes Moreira não mora mais entre nós. Morou?  Moraes partiu desta para cantar em outras rodas, para brilhar em outro plano solar.

Quando Mariana, minha filha, se entendeu por gente, percebeu que eu sempre cantava uma música pra ela, cujo refrão dizia repetidamente "preta, preta, pretinha...". Além de me ver cantar, ela ouvia na vitrola, no rádio, várias vezes, em vários e diferentes momentos. Não sei o que passava em sua cabeça, mas sei que ela gostava. Porque não demorou a aprender a letra e o refrão. E volta e meia, eu a surpreendia cantarolando aquela canção.


Tempos mais tarde, ela me contou uma história, que tento reproduzir aqui da maneira como compreendi. No dia em que ela viu a imagem do Moraes Moreira pela primeira vez, aquele camarada esguio, de cabelo comprido, associou de imediato com a imagem do pai dela (no caso, eu mesmo) que sustentei durante muitos anos uma vasta cabeleira e o gosto por óculos daquele estilo que ele gostava de usar, redondos.

Pra ela, desde então, aquele sujeito era a minha própria encarnação e tinha feito aquela música pra ela. Sem que ela nunca me perguntasse antes, eu nunca tive preocupação de negar a autoria da música. Então, durante um bom pedaço da vida, fui o pai artista, Moraes Moreira, pra ela.

Ontem, ao saber da notícia da morte dele, meu coração ficou mais triste. E, tenho certeza, o dela também. Um pedaço muito especial dos tantos "eus" que já fui, se foi com ele.

Os novos baianos nunca mais se juntarão outra vez, como tiveram a oportunidade de fazer, quatro anos atrás, e rodar o Brasil com uma turnê saudosa e cheia de clássicos. As mesmas melodias que embalaram a dura década de setenta. E nos deram alegria real, em tempos de liberdade restrita.


Não faz muito tempo, descobri que meu irmão, Iram, não tinha senão uma vaga ideia sobre a história dos Novos Baianos. Decidi promover, então, uma sessão de cinema para lhe mostrar algo primoroso, o filme "Filhos de João - O admirável mundo Novo Baiano", de Henrique Dantas. Este documentário ganhou o prêmio de melhor filme , do juri popular e prêmio especial do Juri, do Festival de Cinema Nacional de Brasília, em 2011. E é um documentário fabuloso.

A sessão nos fez varar a madrugada falando sobre música e poesia, sobre a passagem do tempo, sobre a vida em coletividade, sobre sonhos e realidade. E exigiu o consumo de duas garrafas de vinho.


Hoje, acordo com o celular pipocando uma mensagem no WhatsApp. É meu irmão me cobrando: Cadê o seu texto sobre o Moraes Moreira. Abro a janela da quarentena. E escrevo. Acabou Chorare. Está aqui, meu irmão!

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Diário de quarentena - Quinta 09.04.2020

Short Cuts do isolamento social

Temporal

Há dias, visito o passado. A quarentena, o isolamento social é propício a isso. Na trilha sonora, nos filmes, nas lembranças... Pela janela, vejo o tempo passar. A vida está aqui dentro. Nos 35 metros quadrados de meu apartamento. As horas são lentas. A pesar do vento e do começo ensolarado do dia, agora chove a cântaros. O silêncio permite ouvir com mais riqueza o cantar dos pássaros. Há pássaros novos na mata em frente ao meu prédio. Sim, nunca os havia escutado. Em seu canto novo a novidade surpreende a sisudez destes tempos. Nós, passarinhos. Eles, passarão.

A escritora mirim

Dani, minha sobrinha, filha de minha irmã, escreve em tempos de quarentena. Revela-se a nova cronista da família. Texto bom, raciocínio claro. Como todo mundo, ela sente saudade de um tempo que estava bem ali, pertinho da gente e a gente nem se dava conta de como era bom. Tempo de abraço, de beijo, de aconchego. Dani tem letra, tem linha. Bebeu nas águas em que o seu avô navega.




quarta-feira, 1 de abril de 2020

Diário de Quarentena - 31.03.20




Em quanto eu dormia
A luz entrava pela janela
Fazia noite
Não era dia
Enquanto eu dormia
Pensava nela

A mão vadia 
tava em meu corpo
E eu só dormia
Fazia noite
Não era dia

Então fugiu a  mão que havia
Fazia frio
Não era dia
Não era dia
E o sono tanto
Deixou de ser
Luz que invadia

Minha janela
A mão vazia
No corpo frio
Não era noite
Já era dia naquela noite 
Que eu nem sabia 

Não era noite
Nascia o dia

sábado, 28 de março de 2020

Diário de Quarentena - Sábado 28.03.20

Porque é preciso seguir. Tudo vai ficar bem.



sexta-feira, 27 de março de 2020

Diário de Quarentena - Sexta-feira 27.03.20


Foto: Patrícia Leite
A semana que parece um século chegou à sexta-feira, aqui no Brasil.
Hoje, pela primeira vez em sete dias, vesti luvas e máscara e saí de casa para abastecer a dispensa e comprar remédios.

Quando essa história começou, sete dias atrás, eu e Pat, minha companheira de vida, fizemos um estoque compatível com o tamanho do meu apartamento. Sete dias de alimento e tranqüilidade. Saio, portanto, por absoluta necessidade.

Lá fora, encontro um país mudado. A revelia de quem queira pensar o contrário. Não, o que estamos vivendo não é uma coisinha pequena. Não é passageiro. Vai impor que se repense esse jeito veloz de desejar as coisas, de querer sempre mais.

Quem poderia imaginar que, um mês atrás, entrar em um supermercado ou uma farmácia usando luvas e máscara não fosse despertar estranheza? Ainda mais, neste país tropical - até aqui - abençoado por Deus? Mais do que isso: Quem imaginaria encontrar outras pessoas fazendo o mesmo e também achar absolutamente normal?

Há uma disciplina tácita que nos mantém, a maioria dos brasileiros conscientes, a uma distância protocolar e segura de dois metros, uns dos outros. Na fila do pão, à espera do atendimento no açougue, na fila do caixa, em qualquer lugar.

Ainda não há desespero em busca de produtos. Mas as máscaras já não são mais encontradas em farmácias. Nunca foram muitas. Agora, são raridade. Antes da necessidade de usá-las no dia-a-dia, nunca me passou pela cabeça comprar máscaras hospitalares. Álcool também é produto mais difícil de encontrar. No mercado em que fui, não havia papel toalha. Sabe-se lá, por quê?

O que se sabe é que todos estão mais atentos à higienização. O que é um bom sinal quando se luta contra um inimigo invisível, como esse tal coronavírus. Na porta da padaria, um funcionário segura um aspersor com álcool, à disposição de todos que queiram higienizar as mãos, ao chegar ou ao sair do estabelecimento.

No mercado de verduras e legumes, todos os caixas estão protegidos por uma lâmina de material acrílico, de tal forma que o ar que respiramos não seja trocado entre nós (clientes e funcionários).

Mas há uma mudança que é impossível não sentir: tudo está mais caro. Seja pela escassez dos produtos, seja pelo desabastecimento, pela dificuldade de produção... ou, mesmo, pelo oportunismo de alguns. A vida está mais cara em tempos de corona.

Volto pra casa com menos dinheiro, mas abastecido. Antes de entrar no apartamento, sigo os conselhos que médicos e especialistas sugerem: retiro os chinelos e as luvas. Estas, vão direto para o lixo. Os chinelos, para o banheiro onde serão lavados. A roupa segue para a lavagem também. Por fim, um banho se encarrega de me deixar limpo, livre de qualquer vestígio de impureza externa e pronto para seguir a rotina de casa em maior segurança.

É difícil conter  a intranquilidade nos olhos, toda vez que eles param na TV, ou no computador. O medo está entre nós. E vem em ondas com as notícias. O desafio é separar o que é falso e o que é verdade. São os novos tempos.

Quase no meio da tarde, recebo uma mensagem da minha professora Elvira Lobato. A mestra que me batizou de Maranhão Viegas, desde o primeiro dia de faculdade, na UNISINOS. Já lá se vão 38 anos. Nunca nos perdemos de vista e é sempre um prazer receber um sinal enviado por ela.

Hoje, despretensiosamente, me mandou um conjunto de imagens que mostrava monumentos públicos, de várias partes do mundo, protegidos com máscaras nos rostos. Como se fossem, eles mesmos, possíveis vítimas desse novo tempo. Refletiam uma inteligente forma de alertar: o mundo está sob ataque. E o uso correto de uma máscara pode salvar muitas vidas.

Pronto. Estava ali a inspiração que eu precisava para oferecer ao Repórter Brasil, telejornal da TV Brasil, do qual estou Editor-chefe, uma crônica de sexta. Ela nasceu. E está logo aí embaixo. Assim, encerro a primeira semana de isolamento. Vida que segue.



terça-feira, 24 de março de 2020

Matei o bicho!


Isabel e Inocêncio
Meus pais. 
por Innocêncio Viégas 


"Se correr o bicho pega! Se ficar o bicho come!" O que fazer? - Matar o bicho!

A coisa aqui está pra lá de Bagdá. São cinco filhos, todos buzinando em nossos ouvidos, prevenindo-nos para não sairmos de casa. 

A Bel cumpre religiosamente todos os preceitos, eu, que fui um menino sem muita folga, filho único, escolhi a liberdade. Sem ter o que fazer, além dos afazeres da cozinha, fui arrumar a biblioteca. Logo veio a proibição: livro velho tem ácaro, poeira e faz mal a idoso, pode provocar alergia e a queda de imunidade é uma porta aberta, entendeu? Porta? Lembrei-me da porta da rua. Guardei a escada, dei tchauzinho para os livros e fui procurar algo para sair de casa. Logo achei: pagar o boleto da conta do cartão, na loteria. 

- Não vai ficar zanzando por aí, o menino te leva, disse a Bel, referindo-se ao Guga, nosso filho mais novo. Guga me levou à loteria, paguei a conta, fiz uma "fezinha" e já voltamos. Lembrei que estava cabeludo. Pedi então, ao menino, que me deixasse no barbeiro, é perto de casa, quando terminar volto andando. Ele não questionou, boa praça que é, deu folga para o velhão aqui. Ele saiu e eu, em vez de ir para a barbearia, fui primeiro à padaria. 

Lá encontrei a "velharada" tomando café e falando em coronavírus. Arrepiei-me todo, pedi um pingado grande e um pão com manteiga na chapa. Deitei e rolei na gostosura e tomei parte no papo dos coroas. Despedi-me dos amigos e fui, agora, para a barbearia. 

O coitado do barbeiro estava solitário. Nenhuma vivalma havia aparecido. Ao ver um candidato abriu o sorriso e já foi colocando a máscara e calçou as luvas. Ofereceu-me a velha cadeira "Ferrante"dos velhos tempos das saudosas barbearias. 

Disse-lhe como queria o corte e, em lugar do sabão, na hora do arremate com a navalha, preferi álcool. Ele concordou. A televisão, no alto da parede dizia que 348 idosos, na Itália haviam partido desta para melhor e estavam cremando os corpos para matar a peste. 

O Guga chegou em casa, a Bel não me viu. - Cadê o pai? - Ficou na barbearia, falou o Guga. Incisiva, ligou logo. Atendi e já previ o desfecho. 
- Já terminou? - Não! Respondi.
- Vai demorar? - Só um pouquinho!
- Vou mandar o Guga te buscar!
Pronto! Cortaram o barato do velhão. Fui resgatado.

Matutando, logo achei a solução para a situação. Resolvi ficar confinado dentro da adega. Se álcool 
é bom para evitar o vírus, é lá que o danado não entra.


Peguei um dos livros do irmão Fagundes de Oliveira, um livro pequenino "danado de bão", com 
o título "Relicário". Passei à leitura. Vou recordar os velhos tempos e, na virada de cada cinco páginas, um gole da "marvada" para matar o bicho. Tô numa boa! 

Vocês ainda estão pensando nessa coisa ruim? "Sigam o líder!" Vamos matar o bicho. Não esqueçam de derramar um pouquinho pro Santo. 

Bicho morto, passeio garantido! A onda vai passar!
Bebam com moderação!
Matei o bicho! 

Innocêncio Viégas - É meu pai. E também é: Teólogo – Escritor; Membro das academias: Acad. de Letras de Brasília; Acad. Maçônica de Letras do DF; Acad. Maçônica de Letras Paranaense; Acad. Maçônica de Letras e Artes do Brasil – GOB; Acad. Taguatinguense de Letras; Confraria dos Amigos da Boa Mesa – COMES; Academia Maçônica de Letras do Maranhão (correspondente); Academia Maçônica Internacional de Letras; ANE – Associação Nacional de Escritores – Instituto Histórico e Geográfico do DF - CERAT.
Email – inocencio.viegas@gmail.com

Diário de Quarentena - Terça-feira 24.03.20



Chove em Brasília.

São as águas de março que seguem caindo depois de fechar o verão. O tempo lá fora ajuda a decidir: Não ligo a TV, não ligo o rádio, não abro o twitter.  Saio da cama para o café da manhã com minha preta. Minha companheira de vida e de quarentena. O exercício de compartir uma vida nova em um mundo reduzido a quatro paredes. Uma descoberta, um aprendizado, uma comunhão.

Falo por telefone com mãe, pai, filhos, irmãos e amores. A fala pode ser curta, mas substitui, na medida do possível o calor do abraço ausente.

Recebo do trabalho as missões que me cabem. Cumpro com afinco. A cabeça pede mais, mas a distância me impõe limites. É assim. E vai ser assim por um tempo.


Rotina, disciplina e método. Receita desses tempos estranhos. Pequeno manual de sobrevivência, indispensável para a saúde do corpo e da mente.

O dia passa enquanto Almir toca sua viola no aparelho de som. Saudade dos velhos amigos. Saudade de um tempo de antes. Vida que segue.

Nerudas, Manuéis,  Galeanos e Mia Coutos, nos protegei da insanidade do mal da intolerância, nos livra da brutalidade, nos acolhei em suas letras sagradas. Poesia que salva.


segunda-feira, 23 de março de 2020

Diário de Quarentena - Segunda-feira 23.03.20

A semana começa com trabalho à distância.
A distância que deve ser vencida com persistência.
Com paciência.
E poesia.


Hai cai do isolamento



Sigo sozinho
isolado do mundo
recolhidinho

domingo, 22 de março de 2020

Diário da quarentena - Domingo 22.03.20

Faz três dias hoje.

Quarentena. No dicionário, traduz-se como um período de quarenta dias.

Nos dias de agora, seu significado implica estar afastado, isolado, protegendo os outros e a si mesmo de uma doença invisível, implacável com quem se descuida.

Quarentena. Palavra que se incorpora ao vocabulário de forma imposta. Eu não pedi. Ninguém pediu. Mas não há como ser diferente. Sendo mais explícito: Desde que o mundo passou a conviver com o COVID-19, por aqui também chamado de "Novo Coronavírus", os especialistas sugerem o isolamento populacional como a melhor forma de conter a expansão do vírus e de se proteger dele. Então, lá vamos nós. Isolados e sobreviventes.

Os primeiros dias são um misto de assombro, incredulidade e "não sei o que fazer". Há a sensação de sobra exagerada de tempo. Mas, no tempo que sobra, o corpo quer fazer algo (ou muito), a mente se atrapalha e a gente termina fazendo coisa nenhuma (ou, pouca coisa). É um contrassenso. Mas é assim. Até que a quarentena seja melhor compreendida. Ai, as horas e as coisas possíveis começam a se encaixar.

Manter o ambiente limpo é a regra numero um. Sempre há o que limpar. Há sempre algo impuro por perto. E a impureza é a melhor morada do vírus, de todos os vírus. Depois da limpeza, descanso. Porque ninguém é de ferro. E a cabeça precisa descansar.

Se informe, mas não exagere. Estabeleça um limite para as notícias ruins. Elas são muitas e chegam sem que a gente peça, aos milhões  por segundo.

Assistir filmes antigos, ler livros, acompanhar séries. Tudo vale. Mas é preciso organizar-se. A tendência da gente é querer experimentar tudo ao mesmo tempo agora. Vá com calma.

A quarentena está só no começo. E o começo de tudo, quando se tem algo inédito e assombroso pela frente, exige concentração e equilíbrio. Eu tento. E escrevo. E exercito a minha poesia.


Enquanto quarenteno, 
escrevo e penso. 
Enquanto quarenteno, 
sobrevivo.
Enquanto quarenteno 
descubro vida nova  
entre quatro paredes
E sou impelido a ser capaz 
de reinventar o mundo.

Sobre sonhos e pesadelos

Resultado de imagem para o mundo

Visto daqui o mundo parece ter diminuído. À medida de uma gota. Perigosa gota. Visto daqui meus olhos enxergam um susto, um surto, um monstro. Como naqueles pesadelos de criança. Como nas noites de vento frio e falta de cobertor. 

Naqueles tempos, a monstruosidade assustava em sonho. E acabava no exato momento de acordar. Um segundo antes de o pior acontecer. Puf! A realidade vencia o medo. Ficava o espanto, que a gente dava conta de aturar. E com o passar do dia, o espanto ia ficando pequenininho, pequenininho, até sumir. À noite, na nova noite, não havia monstro, não havia pesadelo, o sono voltava ao normal. 

No hoje de agora, o sono pesa, custa a chegar. Dormindo não se descansa, acordado nos falta a paz. Nossos monstros de agora são tão reais quanto invisíveis. Dormir e acordar já não serve para espantar o que nos assombra o tempo todo. Monstro voraz que nos alcança em todo lugar. 


Está em nós, entretanto, alcançar o que ele não alcança. Tolerância. Aquilo que perdemos há algum tempo. Paciência, que ficou esquecida, sem valor agregado já faz hora. Leveza, que nos pesa de tão pesados.

O que o mundo uniu em velocidade instantânea, o que levou tanto tempo pra ser alcançado, nesse começo de século se perdeu como em sonho assombrado de criança, que não consegue se ver livre dos monstros, mesmo quando acorda. 

O que antes parecia unido e forte, for perdendo vigor, valor, valia. O ser humano virou bites. Mais zeros do que uns. Numa batida imperfeita e veloz, a imperfeição tomou conta do espaço sem dar permissão a desejos de sanidade. Insanos, nos tornamos estranhos. Monstros de nós mesmo. Nem dormimos , nem acordamos. Monstruamos. 


E agora, que a vida é posta em cheque, resta reconhecer o labirinto que construímos e perceber que não há saída à vista, se seguirmos sós, se insistirmos na solidão das nossas verdades absolutas, brutos, arrogantes, ignorantes.   

Achar o rumo, encontrar a saída, acordar do pesadelo adulto em que nos metemos exigirá humildade. Despidos dessa volúpia fugaz que nos envolve, a cada um e a todos, é capaz que se encontre uma nesga de luz. 


Antes, porém, haverá dor. Uma dor que não somos capazes de medir, a não ser quando nos alcança bem perto do peito, no fundo da alma. O mergulho que nos espera, dolorido e sem norte, é também o que nos levará a uma nova consciência. 


Quem sabe, uma descoberta da urgência infalível – corpo que pede espírito. Alma que transcende ao tempo. Matéria em fazimento orgânico de um nascimento novo, aprendendo a ser humano. De novo. 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

O sertão em forma de poesia


Quando ele nasceu, seu pai achou por bem lhe atribuir nome de apóstolo e de descobridor. João Cabral. Um menino predestinado? Talvez. Talvez, venha dai a poesia intrínseca, capaz de transformar a pobreza das gentes em riqueza essencial para a alma. 

O menino com nome de apóstolo e de descobridor honrou em vida suas duas joias de origem. Apostolou poesia sertaneja. Universalizou a dignidade humana com traços fiéis do Brasil mais profundo. Descobriu que podia ser muitos, sendo um só. E traduziu em seus versos o olhar que faltava para preencher de vigor o que o mundo só enxergava pela janela da tristeza e da dor.

Há cem anos nascia João Cabral de Melo Neto. Poeta brasileiro que desenhou, como poucos, o sertão em suas linhas tortas e certeiras.  

Vinícius de Moraes (esquerda) e João Cabral, em Paris, 1964.
Foto de Pedro de Moraes para o livro "100 anos de poesia".