O que eu sou
Dormi pensando nisso. Acordei na madrugada, pensando nisso.
Não tenho dúvidas do que sou. Sou poeta, corro nas ruas, nasci numa ilha, cresci
no mundo, amo e gosto de ser amado. Trabalho e justifico o que ganho. Ganho
menos do que mereço. Mais do que preciso. Meus medos existem e eu os trato como
merecem. Nada além. E isso também me traduz.
Ando entristecido com meu país. Não acredito em solução
fácil, nem em ninguém que se sustente por plataformas digitais. Esses são como
o vento. Passam. Mas receio que, como os ventos mais intensos, possam deixar um
rastro de destruição mais ancho do que eu tenha capacidade de imaginar. A covardia
do desmonte exigirá um tempo imenso para recuperar o que se destrói agora com a
delicadeza comum aos ogros. Acho que não estarei aqui para ver o conserto do
meu país. Mas isso é detalhe. O conserto virá. E muitos verão. É o que importa.
Quando o sono me falta, a poesia me salva. Quando perco a
calma, a poesia me salva. Quando o dia vira noite e nada se justifica a poesia
também me salva. Contradigo a tese dos que imaginam que “poeta bom, meu bem, é poeta morto”. Gosto de estar vivo. E vou
insistir com a vida até onde seja possível. Se eu sair antes do tempo, sairei
contrariado. Tenham certeza. Qual é o tempo? Ah, isso lá de adivinhação não me
é dado o direito. Fico, então com a poesia. Como disse, a poesia me salva.
Tenho consciência da finitude do ser. Sou, portanto,
enquanto estiver por aqui. Depois disso, serei mera lembrança. Estou. E
enquanto estou uso o meu desassossego pra enfeitar os meus dias. Ainda que isso
provoque o asco de alguns. Há, em outra medida, quem se comova de alegria. Isso
me traduz. Não parece poesia?
Não tenho a perfeição como meta. Sou poeta. E a estes não
cabe o desejo de perfeição. Meus imperfeitos são a minha cara. São a minha
letra. São a minha música. Danço conforme meu corpo pede. É o que tenho. Danço
ao sabor das ondas, ouvindo Billie, Pessoa ou Manoel de Barros. Danço no
Quadradinho ou em Cochabamba. No Quartier Latin ou em Asakusa, com a mesma
alegria dos que usam a música como bem primal, que não mede fronteiras.
Não tenho herança a deixar. Sou parte dos que se veem com
valor imaterial. Valho mais em memória do que em espécie, eu creio. Por isso
digo: Minha tristeza passa a cada nova linha de poesia. Quem quiser me guardar
me encontrará repartido nas linhas de Borges, De Neruda ou Eduardo Galeano. Soa
pretencioso, mas é mesmo. Com o tempo, descobri que tenho na boca o mesmo sabor
do vinho que eles beberam. E meus olhos veem a mesma graça na vida que eles
enxergaram.
Minhas letras são minha Pátria. Meu tesão não guarda desaforos.
Tenho impaciência aos indolentes. Minha vida, meu grande sertão veredas, cavalgo
em desalinho. Recebo a coragem que necessito olhando nos olhos de quem me atiça.
Xangô e Yansã me acompanham nas manhãs de inverno. Buda, Ganisha, Yemanjá e
Ogum me refrescam a alma no calor. O deserto onde pisaram Jesus, Maria e José
me povoa no outono. E os bichos de São Francisco colorem minha primavera. Sou brutalidade
delicada nas quatro estações. Não mexam comigo. Eu não ando só.