quinta-feira, 6 de junho de 2019

Short Cuts de Quinta - 06062019



O que eu sou

Dormi pensando nisso. Acordei na madrugada, pensando nisso. Não tenho dúvidas do que sou. Sou poeta, corro nas ruas, nasci numa ilha, cresci no mundo, amo e gosto de ser amado. Trabalho e justifico o que ganho. Ganho menos do que mereço. Mais do que preciso. Meus medos existem e eu os trato como merecem. Nada além. E isso também me traduz.

Ando entristecido com meu país. Não acredito em solução fácil, nem em ninguém que se sustente por plataformas digitais. Esses são como o vento. Passam. Mas receio que, como os ventos mais intensos, possam deixar um rastro de destruição mais ancho do que eu tenha capacidade de imaginar. A covardia do desmonte exigirá um tempo imenso para recuperar o que se destrói agora com a delicadeza comum aos ogros. Acho que não estarei aqui para ver o conserto do meu país. Mas isso é detalhe. O conserto virá. E muitos verão. É o que importa.

Quando o sono me falta, a poesia me salva. Quando perco a calma, a poesia me salva. Quando o dia vira noite e nada se justifica a poesia também me salva. Contradigo a tese dos que imaginam que “poeta bom, meu bem, é poeta morto”. Gosto de estar vivo. E vou insistir com a vida até onde seja possível. Se eu sair antes do tempo, sairei contrariado. Tenham certeza. Qual é o tempo? Ah, isso lá de adivinhação não me é dado o direito. Fico, então com a poesia. Como disse, a poesia me salva.

Tenho consciência da finitude do ser. Sou, portanto, enquanto estiver por aqui. Depois disso, serei mera lembrança. Estou. E enquanto estou uso o meu desassossego pra enfeitar os meus dias. Ainda que isso provoque o asco de alguns. Há, em outra medida, quem se comova de alegria. Isso me traduz. Não parece poesia?

Não tenho a perfeição como meta. Sou poeta. E a estes não cabe o desejo de perfeição. Meus imperfeitos são a minha cara. São a minha letra. São a minha música. Danço conforme meu corpo pede. É o que tenho. Danço ao sabor das ondas, ouvindo Billie, Pessoa ou Manoel de Barros. Danço no Quadradinho ou em Cochabamba. No Quartier Latin ou em Asakusa, com a mesma alegria dos que usam a música como bem primal, que não mede fronteiras.

Não tenho herança a deixar. Sou parte dos que se veem com valor imaterial. Valho mais em memória do que em espécie, eu creio. Por isso digo: Minha tristeza passa a cada nova linha de poesia. Quem quiser me guardar me encontrará repartido nas linhas de Borges, De Neruda ou Eduardo Galeano. Soa pretencioso, mas é mesmo. Com o tempo, descobri que tenho na boca o mesmo sabor do vinho que eles beberam. E meus olhos veem a mesma graça na vida que eles enxergaram.

Minhas letras são minha Pátria. Meu tesão não guarda desaforos. Tenho impaciência aos indolentes. Minha vida, meu grande sertão veredas, cavalgo em desalinho. Recebo a coragem que necessito olhando nos olhos de quem me atiça. Xangô e Yansã me acompanham nas manhãs de inverno. Buda, Ganisha, Yemanjá e Ogum me refrescam a alma no calor. O deserto onde pisaram Jesus, Maria e José me povoa no outono. E os bichos de São Francisco colorem minha primavera. Sou brutalidade delicada nas quatro estações. Não mexam comigo. Eu não ando só.