sexta-feira, 15 de maio de 2020

Diário de pandemia - MÚSICA NO VARAL


Foto: Maranhão Viegas 

A TARDE NEM COMEÇAVA
NO CÉU HAVIA UM SINAL
NOS FIOS COMO UMA PAUTA, 
UMA CIFRA MUSICAL

UM BANDO DE PASSARINHOS
EM CANTIGA SEMINAL
LONGE DOS DRAMAS DO MUNDO
ENFEITANDO NOSSO QUINTAL

DESCANSAM EM BREVE PARADA
COISA DE NÃO TER HORA
PLANEJAM VOOS RASANTES
PRA PASSAR DEPRESSA O AGORA

QUE AGORA NÃO TEM MAIS JEITO
ESTÁ DESFEITO O QUE FOI
MAS LOGO VEM BOA HORA
E A TRISTEZA DESSE TEMPO
A GENTE MANDA EMBORA


domingo, 10 de maio de 2020

Diário de pandemia - domingo - 10.05.2020

Puçás



A vida inteira vi meu avô tecendo redes de pescar. Puçás, como se chamam essas redes em Alcântara, lugar de seu nascimento, no interior do Maranhão.

Era um ritual contínuo, cadenciado e silencioso. As mãos íam e vinham, num bailado suave e preciso. Enquanto as horas passavam nas tardes de meu avô. Linhas de náilon, aos poucos, tomavam forma de instrumento de pesca. A transparência do novelo, a dança certeira e ritmada da agulha,  carecia da destreza do pescador para vencer o jogo com o mar e tirar dali o alimento, em forma de peixe. Pequenos milagres cotidianos.

Nunca vi meu avô lançar uma rede ao mar. Mas nunca foi preciso ver.

A exatidão dos nós ao tecer, a firmeza das mãos naquelas linhas, me davam a certeza de que havia ali um entendido de marés.

Meu avô passou boa parte  da vida longe do mar.
Hoje, tenho a consciência de que o mar nunca se afastou dele.

Opílio Viegas, meu avô.
No nosso último encontro em sua ilha, São Luis. 

domingo, 3 de maio de 2020

Diário de pandemia - Deus é que sabe



Que dia é hoje?

A pergunta tornou-se usual, frequente, persistente, insistente, nesses dias de pandemia. É como se tivéssemos perdido a noção do tempo. E acho mesmo que perdemos. Em tempo de pandemia, vamos descobrindo como é viver o comedimento. Sobreviver com o pouco, reconhecer e respeitar os limites. 

No caso do tempo, tenho a sensação de que abrimos mão, sem querer, do calendário. Tornou-se obsoleto. Ou, adotamos por descuido, quem sabe, necessidade, uma versão mais simplificada. Meu tempo agora, por exemplo, cabe muito bem em três estágios: um ontem, um hoje e um amanhã. Agradeço e dispenso o excesso. Me encaixo ao resumo. Um tempo desmedido, sob medida.  

Está mais curta a respiração (mais anchos só mesmo os suspiros). Estão mais curtos os passos. Os gestos, menos efusivos do que foram a vida inteira. Acabrunhamos. Nos reservamos a distância medida. Nos abraçamos com olhares. Nossos olhos por trás das máscaras resguardam sorrisos e choros. Por vezes, entristecemos; por vezes, emocionamos. 

Volta e meia me assalta a pergunta: Que dia é hoje? E meu pensamento voa.  

Podia ser um dia qualquer. Com o sol brilhando lá fora. Com pássaros invadindo a manhã. Com as ruas cheias. Enxames de gentes e carros. Alguém tomando decisões. A vida virando do avesso. Um dia com flores no jardim, água corrente, balão solto no ar, velas ao vento e bicicletas na ladeira. Um dia qualquer. Um domingo qualquer.

Sem resposta imediata, abro a caixa de mensagens. Brilha um sinal. Tem nova. Roberto Além Rojo, meu compadre, cineasta boliviano, que foi pego de surpresa pela pandemia no coração da África, me manda poesia em forma de imagem. 

Mal sabe ele, com uma possibilidade real de resposta à minha pergunta: que dia é hoje?
Na imagem que recebo, homens expostos ao mar azul do Pacífico, ocupam um barco onde se lê a resposta que peço, quase em oração: "Deus é que sabe".