segunda-feira, 27 de julho de 2015

Correspondência


Maurilo Andreas


Por Maurilo Andreas
Uma carta deixada debaixo da porta da casa. Sem remetente, apenas o envelope de bordas verde-amarelas e quatro palavras indicando o destinatário "Para o meu amor".

Com certeza não era para ele e, provavelmente, também não para sua mulher. Os filhos, há muito vivendo em outras cidades, também não eram prováveis amores de alguém que não das próprias esposas. Se tanto.

Recolheu a carta e esperou o carteiro.

- Não é coisa nossa, não tem selo. - respondeu o carteiro jovem desacostumado com as conversas ao pé da porta com aqueles a quem entregava a correspondência.

- Alguém deixou isso aí. Não tem nome?

Acenou negativamente com a cabeça e o rapaz continuou.

- Deve ser conhecido. Tenta saber quem é pela letra.

- Não conheço. O que eu faço com ela?

- Uai, se eu fosse você eu lia.

- Não tem problema?

- Por mim, não. Tava na sua casa, não tava? Então até onde eu sei é sua.

O carteiro despediu-se sem muito interesse e partiu com a consciência e a bolsa leves, sem a preocupação de outros tempos com tantas cartas para entregar.

O senhor entrou em casa, abriu a carta lentamente e uma caligrafia sem sexo e sem idade contou de uma paixão eterna, de corações partidos e de distâncias impossíveis. Não havia "para meu querido fulano", não havia "de sua amada fulana". Pelo que dizia o texto, definitivamente não era para ele.

Embolou o papel e foi até o lixo. De repente entendeu que aquilo era o amor de alguém por outra pessoa. Merecia as cascas de ovos, o feijão azedo e a borra de café da lixeira? 

Foi até o quarto e deixou, com alguma emoção, em uma gaveta, debaixo do suéter que já não servia.

Esqueceu.

Meses depois, voltou do mercado e encontrou outra carta. Dessa vez em cima da cômoda, dessa vez destinada inequivocamente a ele. Era a mulher dizendo adeus. Descobrira a mensagem de amor em sua gaveta e não poderia nunca perdoar uma paixão tão grande pelas suas costas. Justo ele tão frio, tão mensurado, tão guardado. Não havia, ela repetia, possibilidade de perdão.

Leu outra vez e talvez tenha chorado. Talvez não. Tomou um banho, fez um café e tirou a carta anônima da gaveta, debaixo do velho suéter. Foi assistir TV.

A carta agora ficava sobre a mesa, como um raro adereço do apartamento vazio. E ele relia, diariamente, o grande amor que nunca teve na vida.

Maurilo Andreas é publicitário e escritor. É de Minas Gerais. 

domingo, 26 de julho de 2015

Medianeras

Cartaz do filme
Acabo de assistir Medianeras. Um filme argentino sobre solidão, amor e companhia nos tempos da virtualidade. É um filme de 2011, mas soa absolutamente atual. A direção é de Gustavo Taretto. 

Martin
Conta a história de Martin (Javier Drolas). Ele está sozinho, passa por um momento de depressão e não se conforma com a maneira com a cidade de Buenos Aires cresceu e foi construída. Web designer, meio neurótico, pouco sai e fica grande parte do tempo no computador.

Mariana
É através da internet que conhece Mariana (Pilar López de Ayala), sua vizinha também solitária e desiludida com a vida moderna numa grande cidade. Os dois constroem seus dias e suas noites pautados pela companhia solitária do mundo virtual.

Tão pertos e tão distantes, um do outro. Vizinhos separados pelo vazio entre as medianeras de seus prédios. Descobre-se ao longo do filme o sentido do nome. Medianeras são as paredes inúteis que todo prédio tem. Nem frente, nem fundo. 

E é justo por lá que eles encontrarão o caminho que vai romper o isolamento virtual e a solidão real. Medianeras é mais um belo filme da linhagem das melhores películas portenhas. É a prova pronta e acabada de que há vida no cinema argentino, além de Ricardo Darín.

Aí embaixo, o trailer, com pouco mais que dois minutos.   
 

Se tiver tempo e quiser ver o filme inteiro, está aqui o link:

domingo, 19 de julho de 2015

Tão Pouco

Pra fechar o domingo.
Tão Pouco.
Guilherme Rondon. 

Gabriel, o audaz


Gabriel Franke Viegas
Não faz muito, abri o computador. Quando o ecran acendeu, a primeira coisa que li me fez saltar os olhos. Meu filho, Gabriel, anunciou ao mundo que concluiu o seu curso superior de Farmácia, na UnB.

O aviso veio assim, sem mais, nem menos. Não houve pompa, nem circunstância. Não houve preparação. Tudo o que sei é que, ao fazer a contagem de créditos necessários para que ele fosse dado como formado, sobraram três. A UnB exigia 270. Ele conferiu, havia 273. E assim, restava aguardar o dia da formatura. Meu menino estava formado.


Gabriel e sua irmã, Mariana.
Tentei buscar na memória alguma lembrança minha. Lembro do dia em que ele nasceu. Eu, “Glauber Rocha” do pantanal, tinha uma câmera nas mãos e um feixe de emoções indecifráveis na cabeça.

Gabriel e sua irmã, mariana. 
.Houve uma complicação no parto e o filme nunca saiu. Mas ele nasceu. E já veio brigando com o mundo. Uma briga boa. Dessas que emocionam qualquer um.
 

Depois, foi difícil entender o que ele falava. Ou, tentava falar. Foi um tempo de tradução. Mara, Mariana e eu éramos os tradutores oficiais entre ele e o mundo. Porque o escutávamos o dia todo e sabíamos os seus códigos. Até o dia em que ele quis que se pusesse um disco pra tocar. Ele falava e nenhum de nós entendia. Depois de algum tempo decifrei algo como "o inglaterreiro".

Nas minhas contas, ele queria ouvir uma música “do inglaterreiro”. Mas nada, nem ninguém conseguia traduzir o desejo dele, que chegava à exaustão do choro.

Até que, num rasgo de associação livre, me lembrei que ele, desde pequeno, era alcançado pelas músicas que eu gostava. Entre elas, What a Wonderful World, cantada por Louis Armstrong. Eis o mistério da fé (na compreensão dele, Luois era ninguém menos que: o inglaterreiro).

E o meus dedos mágicos nunca foram tão mágicos como naquele momento. Raras vezes na vida experimentei um alívio e um prazer tão grandes como aqueles. Vimos o seu rosto cansado de chorar se transformar em serenidade e prazer. Pela música. Mas, muito mais, por se fazer entender.

Gabriel e seu avô, Viegas, empinando Papagaio. 
Gabriel, o menino, foi assim. Um punhado de desafios constantes. Para nascer, para trocar o choro pelo riso, para se fazer entender, para crescer, para romper seus limites e virar gente.

Para liderar ao invés de ser liderado. Para vencer as lutas ao invés de esperar que alguém vencesse por ele. Para nos convencer de que consegue caminhar – e bem – com as suas próprias pernas.

Gabriel e sua mãe, Mara. 
Dias atrás, já havia me emocionado, também pela internet. Um instantâneo, no meio da tarde, me trouxe a imagem dele, sentado à mesa de uma audição. Palco cheio, componentes mais velhos na mesa e ele, palestrando.

O palestrante
Foi no Piaui. Mas poderia ter sido em Tóquio, ou em Madri. Meu orgulho teria sido o mesmo.

Agora, de novo pela internet, ele me avisa: Me formei.

Nós dois
Corro à adega e abro um vinho. A solidão melancólica do meu domingo cede passagem à alegria serena, à certeza de que tenho parte nisso. E me recompensa em tudo. 


Não há crise que diminua o sabor dessa conquista.

Meu prato pronto.
Minha taça de vinho.
O pensamento lá em você – como diria Djavan.

E na vitrola, “O inglaterrero”.
Que mundo maravilhoso! Valeu, meu filho.

Hoje, eu também me formei na vida.
Um beijo carinhoso do seu pai. 

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Rehab

Porque hoje é dia de rock.
Porque hoje esses caras me ajudam a alegrar o dia e resistir.
Alegremente, resistir e seguir em frente.

The Jolly Boys - Rehab

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Cheikh Lo

É música de preto.
É poesia universal.

É música e poesia de um preto universal.
Margot não está mais por aqui, mas ela ia gostar de ver e ouvir isso.

Música e poesia de pretos. Dos pretos que ela tanto amou e pelos quais lutou.
Para os quais ela tanto sorriu.
E por quem sempre se encantou.

Em memória de Margot.

Porque hoje é sexta.  Cheikh Lo - Degg Gui (com Flávia Coelho & Fixi).

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Deixe o tempo ir

Hermanos Irmãos. Pra começar bem a segunda-feira.
Deixe o tempo ir.

domingo, 5 de julho de 2015

Diálogo dos Deuses

Por Cláudia Henriques (de Portugal)

- votaste?
- votei.

- e...?
- não, obviamente! não, não, e não!


- amo-te...
- e eu a ti…


O aniversário do Poeta

Renata Sanches escreve para lembrar os 60 anos de Mia Couto. E eu reproduzo aqui:

Parabéns poeta!
E obrigada. Por ter-nos dado a África
bordada no seu lirismo, nos seus encantos,
nos seus deslumbramentos.

Por nos mostrar a lua que anda lenta,
mas atravessa o mundo.
E fazer-nos reconhecer que somos da raça chamada sonho.




O Amor, Meu Amor

Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.
Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.
E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.
E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.
Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.
Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.
Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.
E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.
E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.
Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.
Mia Couto, in "idades cidades divindades"