domingo, 21 de maio de 2017

Poesia da pergunta, utopia da resposta


O domingo amanhece cheio de neblina lá fora. Volto meus olhos pra dentro. De casa. De mim mesmo. Minha alma pede corrida. Meu corpo, preguiça. Volto pra cama e me cubro com um lençol fino. O pouco frio que faz exige coberta, mas não cobertor.

Penso no cobertor azul que minha mãe me deu. Ainda não veio frio pra ele. Mas virá. E ao lembrar do cobertor azul que minha mãe me deu, lembro da conversa que tive com ela ontem de manhã. Minha mãe, uma senhorinha que anda a beirar os oitenta, torna-se cada dia mais doce. A ponto de me fazer dúvidas. De onde mesmo vem a minha paixão por poesia? Do meu avô? Do meu pai? Ou, agora, olhando melhor, de minha mãe?

A resposta é que, talvez, minha poesia tenha os três como origem. Minha mãe anda aproveitando cada conversa ao telefone para fazer poesia. Ontem, foi assim. Conversávamos sobre o Brasil torto. Sobre o mundo torto. Sobre as tristezas que assombram este início de Século XXI.
Isabel, seu sorriso e sua poesia.
Comentando a fuga do empresário que gravou o presidente, combinou com o judiciário não ser preso, embarcou num jatinho e desembarcou em Nova Iorque, minha mãe se volta para um desejo tardio com frescor de infância. A conversa muda. "Como eu gostei de conhecer aquela cidade, andar por aquelas ruas. Se tivesse condições iria morar lá, também."

Começo a rir aqui comigo e alimento o sonho de minha mãe com uma outra lembrança. A do irmão dela, meu tio Zé Raimundo. Provoco. "Ah, mãe! A senhora falando assim me lembra o tio Zé. Ele adorava viajar no imaginário. Fazer planos de percorrer o mundo em viagens que nunca aconteceram, senão na ideia dele. E eram viagens saborosas. A senhora pelo menos deseja em bases reais. Esteve lá em 'Noviorque', "  

Isabel embarca firme na provocação e vai mais longe. Passa, num zás, a uma conversa confessional e poética. Diz que sente saudade dos irmãos, se pega pensando em conversas que não teve com eles. Querendo saber coisas de seu pai, de sua origem. "É uma pena que eu não tenha conseguido perguntar coisas que eu hoje gostaria de saber, sobre o meu pai." E passa a descortinar memórias de menina surpreendida com utopias passadas e presentes.

"Hoje imagino que meu pai sabia ler. E como? Como é que ele, um homem nascido no interior, num tempo em que não era comum ter acesso à escola, aos livros, sabia ler? Penso nisso e me encho de vontades de saber coisas dele que ninguém mais pode responder."

Isabel embarca em sua viagem memorial.
Fico ouvindo comovido, do lado de cá da linha telefônica. E estimulo a curiosidade pra saber por que ruas seguem os caminhos de sua mente: O quê mais a senhora queria saber mãe? Dos irmãos homens que tive, só Cândido ainda está vivo. Talvez ele tenha algumas dessas respostas. Preciso ir a Fortaleza conversar com ele. Mas lá está dando um surto de zica e Chicungunia. Por enquanto, não vou lá.

Mãe, não precisa ir lá pra ouvir essas respostas. Ligue pro tio Cândido, peça a ele que ponha um copo d'água por perto, ou uma cerveja gelada, ou uma cachacinha, porque a senhora vai fazer uma longa conversa com ele. E pergunte o que quiser, pergunte tudo. Aproveite o seu tempo e o dele. E viagem, juntos, as viagens que a imaginação lhes permita. E percorram os caminhos passados do vô Evaristo. E se emocionem, e poetizem.

A voz de minha mãe ecoa ainda em meu ouvido. Uma mulher em busca de sua origem. Sem tirar os olhos do horizonte. Com os receios típicos desse nosso tempo insano, mas sem perder de vista uma utopia transformadora. A origem e o horizonte de minha mãe espantam a preguiça do domingo e me tornam ávido pelas teclas de meu computador. Aqui estou e como há neblina lá fora, abro a janela do mundo pelo ecran de quatorze polegadas à minha frente.

E topo com um vídeo depoimento de um dos meus escritores preferidos, Eduardo Galeano. Como minha mãe, penso nas minhas origens e nas perguntas que gostaria de ter feito a Eduardo. Algumas respostas tenho a um clic. Clico. A tela se abre e ele, que morreu não faz muito, aparece mais vivo e atual do que nunca. Falando de medos paralisantes, de amigos, de poesia, de passado, presente e futuro. De utopia. São nove minutos e pouco que ganham o meu dia. Que me preenchem o vazio provocado por essa melancolia brasílica.

Minha origem, poesia e utopia. 
Ande, minha mãe! Ligue logo pro tio Cândido. O melhor da poesia das perguntas é a utopia das respostas.        

sábado, 13 de maio de 2017

Mar de saudade, barco imaginário

Um barco imaginário, a Baía de São Marcos,
memórias do Bela Rosa e de meu avô, Opílio.  

Acordei pensando em meu avô, Opílio.
Desde antes, venho pensando nele. Há dias.
Sei, não faz muito sentido. É véspera do dia das mães, não dos avôs.
Mas, que importa? O pensamento é livre. Penso nele e pronto.

Meu avô era dono de barco. Um barco que só imaginei, a partir do que me contaram. Não tive idade pra ver o mar da baía de São Marcos bater provocante em seu casco. Nem pra sentir o vento de proa soprar no rosto dos barqueiros que se metem a enfrentar o mar aberto. Cantiga de marinheiro, poema de maresia. 

Mas as histórias dele, o Bela Rosa, as poucas que ouvi, me são suficientes para fazê-lo um barco encantado. Foi por um tempo desejo, diversão e ganha-pão do "seu" Opílio. Um barco de aventuras comerciais. Meu avô tinha um pequeno grupo de marinheiros comandado pelo irmão dele, Gregório Viegas. 

A cada travessia trazia coisas do interior. Do continente para a ilha de São Luis.
Vinha de Alcântara, onde meu avô nasceu e se criou. Horas depois de vencer o banzeiro, aportava na Praia Grande ou no I'Bacanga. Portos de desembarque, cheiro de peixe, de frutas, de comida da terra. Gritaria colorida, fuzarca de gente simples, idas e vindas constantes que faziam as segundas parecerem domingos de festa. 

Até um dia em que a notícia chegou primeiro que a carga, primeiro que o barco: Uma rajada de vento quebrara o mastro, deixando a nau à deriva, em alto mar.
Opílio sempre foi um homem prático. Se o mar quer levá-lo, é porque não é mais meu. Mas o convenceram a resgatar. Corda, reboque da marinha, lá se foram mar adentro, sob o olhar atento de Gregório, o capitão. 

Meu pai é quem me conta. Avistaram o barco depois de horas de navegação. Mas o reboque não tinha como chegar tão perto. Gregório amarrou uma corda na cintura e pulou no mar. Nadou contra a corrente até alcançar o Bela Rosa. 

Rebocado, mastro quebrado, parado na Praia Grande sob o olhar de meu avô e seus marinheiros. Foi como uma despedida. Meu avô vendeu o que restou do Bela Rosa ao primeiro que lhe fez uma oferta. 

Imagino meu avô caminhando de volta para a Madre Deus. Alpercatas de couro, calça de linho branco, camisa aberta à altura do peito, cabelo cuidadosamente alinhado, o galego aventureiro ganha a rua de São Pantaleão, entra na Rui Barbosa pensando na próxima investida. Antes de chegar em casa, passa na banca de "seu" Sanclaire. Aposta uns trocados no Galo. E espera pacientemente o fim do dia, quando viria buscar o produto de sua "fé". 

Meu avô nunca perdeu uma aposta.

O "velho Lobo do Mar", Opílio Viegas, comigo.
Priscas eras.  Saudade.