O domingo amanhece cheio de neblina lá fora. Volto meus olhos pra dentro. De casa. De mim mesmo. Minha alma pede corrida. Meu corpo, preguiça. Volto pra cama e me cubro com um lençol fino. O pouco frio que faz exige coberta, mas não cobertor.
Penso no cobertor azul que minha mãe me deu. Ainda não veio frio pra ele. Mas virá. E ao lembrar do cobertor azul que minha mãe me deu, lembro da conversa que tive com ela ontem de manhã. Minha mãe, uma senhorinha que anda a beirar os oitenta, torna-se cada dia mais doce. A ponto de me fazer dúvidas. De onde mesmo vem a minha paixão por poesia? Do meu avô? Do meu pai? Ou, agora, olhando melhor, de minha mãe?
A resposta é que, talvez, minha poesia tenha os três como origem. Minha mãe anda aproveitando cada conversa ao telefone para fazer poesia. Ontem, foi assim. Conversávamos sobre o Brasil torto. Sobre o mundo torto. Sobre as tristezas que assombram este início de Século XXI.
Isabel, seu sorriso e sua poesia. |
Começo a rir aqui comigo e alimento o sonho de minha mãe com uma outra lembrança. A do irmão dela, meu tio Zé Raimundo. Provoco. "Ah, mãe! A senhora falando assim me lembra o tio Zé. Ele adorava viajar no imaginário. Fazer planos de percorrer o mundo em viagens que nunca aconteceram, senão na ideia dele. E eram viagens saborosas. A senhora pelo menos deseja em bases reais. Esteve lá em 'Noviorque', "
Isabel embarca firme na provocação e vai mais longe. Passa, num zás, a uma conversa confessional e poética. Diz que sente saudade dos irmãos, se pega pensando em conversas que não teve com eles. Querendo saber coisas de seu pai, de sua origem. "É uma pena que eu não tenha conseguido perguntar coisas que eu hoje gostaria de saber, sobre o meu pai." E passa a descortinar memórias de menina surpreendida com utopias passadas e presentes.
"Hoje imagino que meu pai sabia ler. E como? Como é que ele, um homem nascido no interior, num tempo em que não era comum ter acesso à escola, aos livros, sabia ler? Penso nisso e me encho de vontades de saber coisas dele que ninguém mais pode responder."
Isabel embarca em sua viagem memorial. |
Mãe, não precisa ir lá pra ouvir essas respostas. Ligue pro tio Cândido, peça a ele que ponha um copo d'água por perto, ou uma cerveja gelada, ou uma cachacinha, porque a senhora vai fazer uma longa conversa com ele. E pergunte o que quiser, pergunte tudo. Aproveite o seu tempo e o dele. E viagem, juntos, as viagens que a imaginação lhes permita. E percorram os caminhos passados do vô Evaristo. E se emocionem, e poetizem.
A voz de minha mãe ecoa ainda em meu ouvido. Uma mulher em busca de sua origem. Sem tirar os olhos do horizonte. Com os receios típicos desse nosso tempo insano, mas sem perder de vista uma utopia transformadora. A origem e o horizonte de minha mãe espantam a preguiça do domingo e me tornam ávido pelas teclas de meu computador. Aqui estou e como há neblina lá fora, abro a janela do mundo pelo ecran de quatorze polegadas à minha frente.
E topo com um vídeo depoimento de um dos meus escritores preferidos, Eduardo Galeano. Como minha mãe, penso nas minhas origens e nas perguntas que gostaria de ter feito a Eduardo. Algumas respostas tenho a um clic. Clico. A tela se abre e ele, que morreu não faz muito, aparece mais vivo e atual do que nunca. Falando de medos paralisantes, de amigos, de poesia, de passado, presente e futuro. De utopia. São nove minutos e pouco que ganham o meu dia. Que me preenchem o vazio provocado por essa melancolia brasílica.
Minha origem, poesia e utopia. |
Anderson Ribeiro, poeta e jornalista amigo me escreve depois de tentar várias vezes postar um comentário aqui, sem sucesso. Lá vai o comentário dele:
ResponderExcluirQue papo gostoso. Que leveza! Rememórias e saudosismo. E o melhor, buscar no passado motivos (e muitos) para seguir adiante. Sempre adiante. Um luxo!
Obrigado, amigo Anderson.