domingo, 25 de fevereiro de 2018

O piano, o maestro e a música

O maestro João Carlos Martins
O sobrinho, Ives Gandra Martins Filho
Havia um tipo de despedida programado para aquela data. O sobrinho, presidente do Tribunal Superior do Trabalho, encerraria um mandato à frente do Tribunal. O tio, músico, quis fazer uma homenagem. Quis mais, quis aproveitar a oportunidade para também anunciar uma despedida.

Sobrinho e tio se encontraram. E a segunda despedida roubou a cena. Não porque a história de Ives Gandra Marins Filho, o  ministro em recolhida, seja menor. Mas a história do seu tio, o maestro João Carlos Martins carrega um quê de persistência, de obstinação, imensurável. Por isso, única.

João Carlos Martins foi um menino prodígio, um adolescente ousado, um adulto desmedido. Um homem de muita sorte, ao final. O piano e a música foram, desde sempre, a sua obsessão. No auge da fama, ainda muito jovem, sofreu um acidente bobo, que lhe comprometeu o movimento de uma das mãos. A recuperação foi lenta e dolorosa. Mas foi.

As mãos de João, marcadas pela dor. 
Recuperado, sofreu um assalto e os assaltantes lhe impuseram um novo drama. Outra vez, as mãos ficaram comprometidas. Decidiu abandonar os teclados. Voltou a tocar, mas a dor... ah, a dor... havia se transformado em uma companheira inseparável. Não insuperável.


O avanço da medicina o ajudou a recuperar parte mínima dos movimentos das mãos. Não a se livrar das dores. Pra não ficar longe da música, decidiu dedicar-se à maestria. Virou um maestro mundialmente respeitado, como já o fizera na condição de músico. Parte dessa história já contei aqui mesmo, em outra postagem, sobre um dia em que nos encontramos.


Mas há uma hora em que é preciso reconhecer os limites. A música seguirá sendo um elixir da juventude para ele. Mas o corpo pediu um tempo. Então, o pianista João Carlos Martins, cuja história já virou filme anunciou sua despedida dos teclados. Aconteceu semana passada. E virou matéria prima da Crônica de Sexta - do Repórter DF. O último ato do pianista que não sairá da nossa memória. Jamais.



sábado, 3 de fevereiro de 2018

Amor e poesia em forma de água


Se prevalecerem a arte, a magia, a poesia e a emoção, Guillermo del Toro deve levar o Oscar de melhor diretor este ano. Assim como o mais recente filme dele, também. Se não levarem, vai ficar um travo na boca. Como tem sido comum desses tempos de sem-graceza, em que nada mais nos surpreende. "A forma da Água" é um filme que traz impressa a marca da genialidade de del Toro. Dos seus humanos estranhos, dos seus monstros delicados, de seus personagens oníricos e cotidianos.

Tenho pra mim que o transcurso do tempo é uma das medidas que nos permite saber quando um filme se impõe e nos arrebata de corpo e alma. No cinema, não perceber o tempo passar é sintoma de que se foi tomado pela história. Neste caso específico, duas horas de filme passam sem que ninguém perceba. Sem que se tenha tempo de desprender o fôlego, represado à primeira cena.

Aliás, a atmosfera tensa pontua "A Forma da Água" o tempo todo. Num jogo de esfria e esquenta que nunca é morno. Um conto de fadas erótico. Uma monstruosidade delicada e sensual. Guillermo consegue a proeza de fazer caber romance e violência dentro de uma história que seduz novos e velhos. Espertos (na etimologia castelhana da palavra) e incautos. Românticos e descrentes.

Há na história um pouco de tudo e de cada coisa desse nosso tempo louco. A lente de Guillermo olha o passado com olhos de agora. Extremamente atual, dá vigorosidade à década de 60, com seus conflitos e valores do "american way of life". Da guerra fria revivida, à intolerância política e racial; da corrida armamentista à poesia; da pintura à fotografia; Da música popular de Carmem Miranda às clássicas orquestras, como a de Benny  Goodman. O filme se dá ao luxo de ter uma protagonista (Sally Hawkins) que fala pelos cotovelos sem dizer uma palavra - a não ser quando sonha. É muda de nascença. E como é veemente!


O malvado da história, interpretado magistralmente por Michael Shannon, já é um clássico. Um caricato convincente. Octavia Spencer, no papel de uma funcionária da limpeza e melhor amiga da personagem principal, dá uma banho de interpretação. Confirmando o alto nível da sua carreira de atriz, que já lhe rendeu Oscar, no filme Histórias Cruzadas.


Vai haver quem não goste (sempre há). Haverá quem ache que o amor de uma muda por um monstro aquático carrega algo de animalesco. E não vão alcançar a essência desse "A Bela e a Fera pós-verdade". Mas não se importe. O filme é uma aula de poesia e de amor. Um filmaço. Corra pro cinema. E confirme.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Quem é do mar não enjoa

A caminho do mar, com meu pai. Em boa companhia. 
A todo aquele que nasce numa ilha - pedaço de terra cercado de mar por todos os lados  - como eu, é dado o direito de dizer: o mar em mim, não é de hoje. É de útero.

Já usei esta expressão em poesia (que virou música, por obra e graça do "meu Maestro Soberano", Luis Theodoro). A poesia também fala das minhas origens, da minha Madre Deus, bairro ludovicense onde nasci e vivi a minha primeira infância. E fala do mar. Um mar que me acompanha por toda a vida, onde quer que eu vá. 

Assim sendo, por mais distante que o mar esteja ele segue em mim. É assim em Brasília, onde vivo agora e o Lago  Paranoá se oferece como um mar de água doce, imenso e sem limites. Quando o Lago não basta, sigo a receita dos românticos, que miram no horizonte e, de qualquer ponto da cidade, me farto de um outro mar que vem de cima: o céu de Brasília.

Neste dois de fevereiro, apesar de longe dos oceanos, sou tomado por uma memória afetiva que mais uma vez me remete ao meu mar pessoal. Navego com o "Bela Rosa", barco imaginário, que pertenceu ao meu avô, enquanto transcorre o dia dedicado à rainha do mar. 

No sincretismo religioso, o dois de fevereiro é dia de Iemanjá. Os católicos celebram Nossa senhora dos Navegantes, ou Nossa senhora da Glória.


Independente de crenças ou credos, alimento a esperança aventureira de poder navegar, como um Camões, por mares nunca antes navegados. Em Brasília, ou em qualquer lugar, que essa ilha que chamamos "vida", siga cercada de mar por todos os lados. 

Ai embaixo, a versão desta crônica que foi feita especialmente para o Repórter DF, da TV Brasil. A apresentação é de Caroline Lasneaux. A edição de imagens é de Queila Rísia. A crônica foi ao ar neste dia 2 de fevereiro de 2018. Dia de Iemanjá.