segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Ventos Salgados

Por Inorbel Maranhão Viegas




Vem de longe essa minha idade. 60 anos. Vem de útero. Do encontro primeiro do que são meus pais e me tornou resultado de ato de amor.


Certa feita, descobri à mesa, entre amigos mais experientes que eu, um Primitivo de Mandúria, sessentani. Lembrei-me agora da surpresa interior que me invadiu. Talvez, como nunca antes. Foi, de fato, o primeiro encontro da minha alma com um sabor de um vinho desenhado à mão. Tomou-me o corpo um misto de prazer, encanto... um certo “não sei o quê”, típico das primeiras vezes. Sensações daquelas que se tornam eternas. Indeléveis tatuagens marcadas no espírito.


Pois, ontem, experimentei outra vez. Não um Primitivo. A sensação de viver, de ter, de estar sessentani. Não cometo a injúria de me comparar ao vinho. Não seria justo com ele. Nem com a memória dos amigos com quem comparti a mesa, naqueles idos tempos. Aquilo é único. 


Meus sessentani, antes de tudo, são meus rastros nessa vida. São o que fiz, o que faço. O que me dá existência. São o conjunto das emoções que eu vivi até aqui. Aquelas que me fazem enxergar o espelho sem ter que fechar os olhos, de medo ou vergonha. Ao contrário, resplandecem-me. 


Sorrio para as marcas que o tempo deixou. Alguma dor se vê ali – porque as dores são parte necessária da vida, de nós mesmos. Sobrancelhas desalinhadas, olhos firmes, impregnados de uma mansidão explícita e de uma coragem vulcânica que desconfio, sem que ainda tenha absoluta certeza, de onde vem. Certeza única que trago é que estão sempre ao alcance, quando o menino lhes pede a mão. E isso tem-me bastado.


Meus filhos estiveram comigo. Cada um a seu modo. Mariana foi quem veio primeiro. E ocupa lugar especial, não há como negar. Foi quem me arrancou o primeiro suspiro de pai, o primeiro sorriso, o primeiro medo real e muitos orgulhos que coleciono até aqui. Depois, Gabriel. Que tem o seu lugar único. Que me fez questionar em poesia e imagem o fato de não lhe ter percebido o passar do tempo. Quando espantei, estava maior que eu. Mas mantinha o mesmo sorriso e exigia o mesmo cuidado, o mesmo amor. 


Não faz muito, ganhei dois outros filhos e um neto. Priscila, Philipe e Ravi.  Tivesse eu feito um pedido, por escrito, revelando meu desejo de ser humano, não sei se teria feito melhor. Se teria sido mais capaz. Para Priscila guardo meu amor que acolhe e recebo de volta gratidão terna e consistente. Philipe rompe as amarras do tempo e do mar. E, lá de longe, me nomeia pai. E me comove. Pela altura do salto, pelo alcance do verbo, pela responsabilidade de ser. 


De Ravi não careço dizer nada além de que sua tradução é um amor genuíno. De criança. De menino. Uma conquista que digo sem medo – eu mereço. 


Sessentani. Minha primitiva colcha de retalhos. Cerzida com esmero por esse Deus invisível, travestido tempo/espaço/luz. Minha vida. Temperada pela cor natural do amor que me acompanha nessa jornada (e que eu desconfio já ser de muito antes), Patrícia, minha preta. 


Foi ontem. Foi como estar à mesa. Foi magnífico. E isso é tudo. 


Brasília, 21/08/2022