quinta-feira, 31 de março de 2011

Memórias da Profissão - O "Diário" de Ângelo

Ângelo de Souza é um grande amigo, jornalista dos bons, que conheci em Campo Grande e hoje vive no Rio de Janeiro. Um dos textos mais afiados que já li, Ângelo era sempre um provocador nas redações por que passou.

Nunca teve tempo pra esperar. Tratou de fazer o seu próprio. Às vezes, atropelou o tempo. Outras tantas, acertou em cheio. Me lembro de um domingo. Eu dormia, ainda, quando dei com ele quase dentro da sala. Um susto. O Ângelo pulou as grades da minha casa porque precisava conversar e tinha que ser naquele momento. O Ângelo era assim.

Outra vez, diante de um chefe em crise, que lhe usou enfiar o dedo na cara, Ângelo não teve dúvidas, cravou-lhe uma mordida no dedo. A redação veio abaixo e a dura do chefe acabou ali.

Hoje ele me manda um texto delicioso e oportuno, que eu faço questão de dividir com vocês. Valeu, Ângelo.

Amigo,

consultei o arquivo do finado "Diário da Serra", na Fundação Barbosa Rodrigues, em Campo Grande. Comecei a trabalhar lá, numa época em que cada comandante militar que visitava a cidade era noticiado com destaque, e inquirido sobre a chamada revolução, ao que respondiam algo como: está cumprindo seu papel.

O presidente de então pretendia liderar uma cruzada contra a pornografia; as tvs exibiam certificado de censura antes dos programas; as mulheres peladas das revistas masculinas não mostravam a coisinha e tinham que cobrir pelo menos um dos peitinhos nas fotos mais ousadas... nostalgia.

Para esta data e seu diário, selecionei estas imagens (edições de 1982), na sequência:
o governador de então entre seus garantes de ocasião;


um regime que anunciava mas tinha vergonha de assinar...;


... e que preferia se vender como programa de televisão (argh!);


mas a história seguiu... (eu fiz parte dela! veja no detalhe);
(O Ângelo é um dos que está na foto, no cantinho da página, lá no alto)


e o que realmente importa está na legenda deste retrato publicado na página de economia, em matéria de balanço da expogrande -- meu primeiro e involuntário plantão. outra história... (talvez não dê para ler, mas a legenda diz que o Touro campeão, faz uma pose especial para a lente de Narciso Silva, outro grande amigo e fotógrafo)
Tenho mais fotos... e abraços para você e para os colegas daqueles tempos primeiros meus na profissão -- Fausto Brites, que ficou de me ensinar a escrever; Silvio Martinez, o primeiro chefe, que me falou do sacerdócio do jornalismo, onde não havia hora para almoçar; Guilherme Filho, que me mostrou seus poemas e era como que um irmão mais velho que eu não tinha e depois foi chefe também... Muitas histórias. Muitos personagens. Êta vida besta, meu Deus.


Depois a gente conversa mais. Abração,

a.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Rio que passa, abraço que fica

Heráclito, o pai da Dialética
Semana passada viajei a Campo Grande para um encontro e uma despedida. Reencontrar o passado é sempre um desafio. Porque o passado nunca é igual quando se tenta presente outra vez. Heráclito de Éfeso, filósofo grego, pré-socrático, considerado o pai da dialética, já dizia: "Não se pode mergulhar duas vezes no mesmo rio, pois outras águas estão continuamente correndo".

Pois, por algumas horas, estive diante de um rio, de um mesmo rio, com águas distintas, correntes e contínuas. Minha viagem de reencontro com o passado tinha uma despedida, o funeral do senador Lúdio Coelho, como referência. “Seo” Lúdio, sobre quem eu havia escrito poucos dias antes, aqui no blog, partiu com a consciência de ter vivido muito e intensamente.

E, na partida, se viu rodeado de poucos amigos. Alguns do círculo mais íntimo, da família. Poucos da vida pública. E perceber isto me fez acreditar que a decisão de sair de Brasília apenas para estar lá, presenciando a sua última caminhada, foi uma decisão acertada.

Um silêncio, um choro contido pelos cantos, o chapéu que lhe serviu de marca por toda uma vida, uma manhã de céu nublado e um punhado de terra por cima do caixão. Estava concluído o último ato.

Dos amigos que encontrei na breve viagem, em especial, guardo o abraço da Domingas. Domingas é uma senhora paraguaia que trabalha uma vida inteira na casa do “seo” Lúdio. É parte integrante da família e quando me viu – havia pelo menos uns oito anos que não me enxergava – foi como se tivéssemos retomando uma conversa interrompida no dia anterior.

Ela se surpreendeu com a minha presença ali. Quis saber de mim, da minha família, dos meus filhos. A mesma Domingas que me levava chipas quentinhas e café feito na hora, toda vez que eu entrava na casa do “seo” Lúdio. A mesma mulher firme e leal. Agora, só um pouco mais triste. Abraço a Domingas como quem mergulha, de novo, no mesmo rio. Um rio que não é mais igual, mas que continua lá. Firme, contínuo e corrente, apesar da passagem da vida.

O velho Lobo da estrada

O ônibus se aproximava da fronteira do México, numa cidadezinha do Texas, quando foi parado pela polícia americana. Lá dentro, um senhor de idade, 77 anos, levava, entre instrumentos musicais, um punhado de maconha. O ônibus foi retido e o velho senhor, levado à delegacia. Durante a prisão, ao ser questionado pelo policial ele disse, simplesmente: Cara, eu tenho mais de 70 anos e não vou deixar de fumar a minha maconha por você.

O senhor de idade, personagem da história aí acima, é Willie Nelson, ícone da música folk americana, defensor da descriminalização da maconha e autor de inúmeros sucessos musicais. Willie atravessou o século passado e se manteve como um dos mais consagrados artistas da música americana.

Conto essa história porque nesse início de semana Willie voltou às páginas dos jornais. É que a juíza da cidade onde ele foi apanhado anunciou uma decisão surpreendente: Willie pode se livar de ser condenado à prisão por posse ilegal de maconha, caso aceite cantar no tribunal um dos seus maiores clássicos - Blue Eyes Criyng in the Rain.

Tudo indica que o velho lobo da estrada vai aceitar a proposta. Enquanto ele não decide, a gente curte aqui a música que pode livrá-lo das grades.

terça-feira, 29 de março de 2011

segunda-feira, 28 de março de 2011

Olhar avesso

O teu olhar e o meu
veem a mesma direção

O teu invade o guardado
O meu já sabe que não

Vista de longe a paisagem
Viagem na contramão
Esfrego os olhos aflito
recorro à intuição

Ei, sujeito, se emende
Abra o olho, ele te mostra
O olhar que tens aí dentro
Já encontrou sua resposta

O olho fechado é cego
O olho aberto é clarão
Pra um olho que inveja o vento
Ventania é furacão

sábado, 26 de março de 2011

Papo rápido no Facebook

Eli Moraes, um novo amigo da minha lista de amigos dessa novidade (para mim) chamada Facebook, declara-se surpreendido com uma pesquisa americana que investiga um novo ponto estratégico das mulheres - um certo ponto U. E ele diz: Ainda nem consegui identificar ao certo aonde fica o ponto G!

Imediatamente ele recebe um resposta da Thaysa Freitas, outra nova amiga virtual, que mandou bem (e rápido): O ponto G é uma região específica que fica entre o ponto F e o ponto H. Na dúvida, vai apertando o alfabeto inteiro. Quando a moça parar de reclamar... bingo!

Descobri que a Thaysa assina um blog o Madame Rosmerta e tal e coisa. O texto, delicioso, parece ser dela. E pode ser lido por completo no link a seguir. Já gostei da passagem por lá. E indico.

http://mrosmerta.blogspot.com/2009/01/sobre-ereo-masculina-o-sistema-nervoso.html

Mundo nuclear

Renzo Vazques, o menino bom que virou cineasta e vive em Londres, postou hoje cedo um filme de animação que trata da questão nuclear. Por ser atual, por ser inevitável, porque não há como seguir sem tomar decisões que envolvam o nosso futuro e o tipo de energia a que vamos recorrer, aí vai...


Forum nucléaire from étapes: on Vimeo.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Memórias da profissão - ACT Comunicação

Ecilda e Maranhão
No início da década de 90, mais precisamente, em 1994, eu e Ecilda Stefanello criamos a ACT Comunicação. Queríamos cuidar do nosso próprio nariz e achavamos que era hora de inaugurar uma nova jornada, juntos. Tinhamos acabado de participar da campanha vitoriosa, que reconduziu ao governo do Estado de MS o senador Wilson Martins. Sem saber direito, demos vida e forma ao embrião de uma empresa de marketing político.

Festa da Vitória, campanha governo MS 94. Entre outros,
Mário Ramires, Ricardo Carvalho, Paulo Simões, Guilherme
Rondon, Lenilde Ramos, Tom Einhorn, Sueli Bacha,
Ecilda Stefanello, Mara Viegas e Maranhão.
Foi uma jornada de 12 anos de sociedade, que nos permitiu trabalhar por este Brasilzão afora. Com a ACT Comunicação expandimos o nosso horizonte profissional. Fomos do Acre ao Rio Grande do Sul. De São Paulo a Minas Gerais. Chegamos a fazer uma pequena incursão pelo Mercosul.

Em SP, tocando o Referendo das Armas,
 com Mário Schuartz,
Zé Cerozzi e Fernando Waisberg
Tendo a comunicação como eixo central do nosso trabalho, nos tornamos os primeiros a produzir material jornalístico/informativo a ser veiculado numa emissora da Rede Globo, no Mato Grosso do Sul. Eram bons os tempos em que produzíamos o programa "Conexão Regional" para o SEBRAE, que ía ao ar sempre aos sábados, como um interprograma da TV Morena, antes do Globo Esporte.

Em Rio Verde, atrás de boas histórias pra contar.
Era um programa curto, mas delicioso de fazer. Contava histórias bem-sucedidas de pessoas simples, gente do interior, com cara de Brasil. Quem apresentava era Iza Jucá e um garoto que, se não me engano, se chamava Rafael Matos.


Foi também com a ACT Comunicação que ganhamos um prêmio de mídia regional, da Rede Globo, na categoria institucional, para uma série de filmetes que contavam a história dos  "Cem anos de Campo Grande". Para esse trabalho reunimos quase 20 pessoas, entre técnicos, artistas, pesquisadores e jornalistas. Sem nenhuma falsa modéstia, nós éramos abusados e fazíamos bem tudo aquilo em que nos metíamos.

Para esse trabalho, "importamos" o jornalista Edmar Figueiredo e o diretor de imagem Hélio Camerieri. Tudo isso me vem à memória neste momento por conta  do que está fazendo o fotógrafo, Roberto Higa, em sua página no Facebook.

Higa está trazendo à tona, ou melhor, está desencravando as fotos mais fantásticas do seu arquivo pessoal. E automaticamente, nos provoca esse exercício de memória que resgata bons tempos da profissão. Com o Higa, eu e Ecilda temos pelo menos uma boa passagem: Uma jornada de quase uma semana, imersos em uma carvoaria.

Nossa missão era mostrar o sofrimento de crianças obrigadas a trabalhar quase como escravas, nas carvoarias. E as primeiras providências que o governo estava tomando, a partir daquelas denúncias, para banir o trabaho infantil daquele lugar.

Tudo era muito difícil por lá. Mas, de uma coisa a gente nunca escapava. Todo dia, antes do trabalho começar, tinha que gastar um tempo refazendo a trança do japonês. Sem trança, não havia foto.

domingo, 20 de março de 2011

Da série: Crianças, gramática e poesia

Cris e Cisco, ainda pequeno.
Sobre a Cris Guerra e o Cisco, eu já falei aqui. Ela é uma amiga virtual que virou real. Ele é um menino que cresce a olhos vistos. No tamanho, na inteligência e na sensibilidade. Cisco é uma das comprovações reais da tese que o poeta Manoel de Barros defende de olhos fechados (ou, bem abertos): Criança erra na gramática e acerta na poesia. As mais recentes "Francisquices" têm presença assegurada aqui ou em qualquer lugar do mundo. Abram alas, o Cisco chegou!

Francisquices da semana

Tirando fotos com a câmera da mãe:
– Sorria, Mamãe! Agora vou tirar fotos dos brinquedos. Sorria, brinquedos!

Tomando banho enquanto o noivo da mãe dorme.
– Fecha a porta, Mamãe, vou tomar banho sozinho pra não fazer barulho. Prometo que não vou ouvir nada com a minha língua. 

Na escola, aguardando a mãe fazer matrícula no inglês e vendo a primeira aula de capoeira dos outros meninos.
- Mamãe, aula de inglês é capoeira?

A primeira Lombada não se esquece

Essa quem me contou foi o Pedrinho Basso, lá de Foz do Iguaçu. Um amigo dele, argentino, fissurado por viagens de carro, comprou um "motor home", um daqueles carros preparados para viagens familiares, muito comuns entre americanos e europeus, mas pouco habituais aqui no Brasil.

Diz o Pedrinho que argentino que não conhece o litoral catarinense, não é argentino. Por isso, o amigo dele preparou a primeira viagem com o novo trailer para Camburiú. A preparação foi um caso à parte. Caprichosa, a mulher dele comprou loucinhas especiais, tudo arrumado com o maior cuidado. Quadros, utensilhos e até xícaras de cafezinho penduradas em ganchinhos, estrateginamente colocados sobre um pequeno balcão na "cozinha".

Tudo pronto, partiram. Providencialmente, carregavam um dicionário espanhol/português para facilitar a comunicação com os hermanos. Não havia muito que entraram em solo brasileiro quando ele avistou uma placa na estrada: Lombada.

Virou-se para a mulher e pediu calmamente: Querida, veja aí o que significa "lombada" em português. Óbvio, não deu tempo de ouvir a resposta. Xícaras, quadros, utensilhos de cozinha, voaram por todo lado. Pouca coisa ficou inteira. Eles acabavam de descobrir, na prática, o sentido da palavra "Lombada".

PS.: Pra quem não sabe, lombada é um obstáculo horizontal, usado em alguns trechos das rodovias brasileiras, que obriga os motoristas a reduzirem a velocidade em trechos considerados perigosos e, assim, evita acidentes graves.

Sem medo de dizer "eu te amo"

A Cristina Nashif mandou pra Mara, que mandou pra mim; que resolvi começar o domingo assim. Sem medo de dizer eu te amo.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Pantanal cheio. Poesia certa!

Há muitas formas de falar sobre o pantanal, sobre o clico da vida que habita ali, sobre a inconstância da águas e sobre o homem, no meio de tudo isso.

Em tempos de cheia, o pantanal vira notícia. E quase sempre a imagem que vem de lá está associada ao sofrimento. Os economistas falam das quebras nos preços. Os pecuaristas, nas perdas, os empresários na redução dos lucros.

Hoje, navegando na internet, vi uma mensagem do Guilherme Rondon. Antigo e bom amigo, dono de um hotel no coração do Rio Negro, músico respeitado, compositor e poeta.  Como muitos outros, o Guilherme também vive do pantanal. De suas belezas, de sua harmonia. Como muitos, a cheia deste ano que superou outras cheias históricas deve ter causado algum tipo de prejuízo aos negócios do Guilherme.

Mas, apesar desta certeza, a mensagem do Guilherme era digna de um poeta. Alguém que enxerga um pouco além dos lucros. Alguém que vê o drama sem tirar os olhos da poesia. Por isso, resolvi reproduzir aqui o que ele disse. E junto, sapequei as fotos da Polliana Tomé, só para que ninguém tenha dúvidas do que ele está falando. Diz o Guilherme Rondon:

"As águas chegaram ao ponto máximo,
foi a maior enchente de todos os tempos no pantanal...
Já parou de encher e a água começa a baixar lentamente....
Muitos prejuízos materias e financeiros. 
E um lucro enorme para a Natureza renovada ... 
O pantanal passa a régua e agradece."

Confira, nas fotos da Polliana





quinta-feira, 17 de março de 2011

Amor ao primeiro canto

Certa vez,  a Pingo, que é como os amigos chamam Gisele Sater, apareceu lá em casa, junto com a Rose Rodrigues, uma amiga jornalista, que também é madrinha da Mariana. As duas trabalhavam juntas num projeto e eu nem me lembro ao certo o motivo da visita.

Pingo é cantora. Também, de onde ela vem, não havia de ser diferente. Ela é irmã de Almir, de Rodrigo e tia de Gabriel Sater. Uma família com DNA musical, mais do que afinado, que carrega a essência do pantanal na voz e nas cordas da viola. Com jeito de quem não faz muito esforço, eles espalham beleza em forma de canção, o tempo todo, em todo lugar por onde passam.

O certo é que o Gabriel (o meu filho) era um molecote, coisa de quatro anos, se muito. E não tinha a menor idéia de quem fosse aquela moça. Muito menos a família dela. Mas a Rose, percebendo o olhar parado do menino para a Pingo desde que ela chegou, resolveu caprichar na apresentação.  Gabriel, essa é a Gisele, minha amiga, ela é cantora. E ele, com o olhar ainda parado, disse com a maior convicção: Eu sei, já ouvi falar muito nela.

Bastou isso para selar uma espécie de paixão platônica entre os dois. No dia seguinte, a Pingo fez chegar lá em casa um bilhete endereçado ao Gabriel. Ela o convidava para um passeio no Shopping e um Milk Shake. Pronto. A primeira providência dele foi pedir para ir ao salão cortar o cabelo e passar um creme especial que o deixava parecido com aquelas cacatuas, que têm o cabelo todo espetado pro alto.

Na hora marcada, ela chegou e os dois se foram. Rose resolveu carregar Mariana também. Deve ter sido um passeio inesquecível. Desde esse dia, a família Sater ganhou um fã incondicional. Mas não para o Almir, o irmão mais famoso. Gabriel, enquanto pode, não perdia um show da Gisele Sater. Se aprumava todo e fazia questão de levar flores no camarim para a sua amiga cantora.

No último show do Almir e companhia que assistimos em Campo Grande, a Gisele estava entre as convidadas especiais. E  Gabriel não descuidou da flores. A cena do encontro dos dois está registrada na sequência aí embaixo.



Faz tempo que a gente não que a gente não encontra a Pingo ao vivo e a cores. Mas, esses dias, vasculhando a blogosfera, encontrei um clip antigo, simplesinho, mas delicioso. Não só pela música de Renato Teixeira,  Irmãos da Lua. Mas pela qualidade da interpretação e pelo encanto traduzido no rosto de Almir e Rodrigo vendo a irmã, Pingo, cantar.

Nesse filme, os dois têm no olhar um quê de admiração por ela que me remeteu ao mesmo olhar parado do meu Gabriel, quando era criança e a enxergou pela primeira vez. Certamente, para nunca mais esquecer.

Memórias da Profissão - “Seo” Lúdio, em três tempos

A importância da Ponte

As crianças adoravam as histórias dele
“Seo” Lúdio. Era assim que o povo tratava Lúdio Martins Coelho, o prefeito mais popular que Campo Grande já teve. E um dos mais ricos também. A riqueza vinha de família. O pai dele foi um dos maiores fazendeiros do antigo Mato Grosso. E os filhos trataram de cuidar bem do patrimônio. Tão bem que o multiplicaram em muitas vezes.

Mas, nem toda a riqueza serviu para tirar o jeito interiorano do “Seo” Lúdio. Ele não esbanjava. Não dava demonstrações públicas de riqueza. E ainda tinha um jeito de se comunicar que lhe garantia total identidade com o povo. Eu sempre achei que esse jeitão meio caboclo, no fundo, no fundo, não passava de uma bela estratégia de marketing pessoal.

Era o prefeito das coisas simples. Tratava a cidade como quem trata a sua própria família. Ou, o seu curral, diziam os críticos mais ácidos. Mas o povão adorava o “Seo” Lúdio. Invariavelmente, iniciava ou terminava os seus discursos dizendo que "Campo Grande era bom pra criar criança e fortalecer a família". E tinha tiradas sensacionais.

Um dia, ele inaugurava uma das pontes sobre o córrego Prosa. Nessa época, o Roberto Higa era o fotógrafo da Prefeitura e experimentava uma sofisticação – uma câmera Polaroid, com a qual tirava as fotos e entregava na hora ao fotografado. Com autógrafo e tudo do prefeito, causando um imenso alvoroço. “Seo” Lúdio adorava. E o povão, mais ainda.

A ponte era um antigo desejo da comunidade e ía facilitar muito o tráfego na região. O evento era tão importante que a Rádio Educação Rural decidiu transmitir ao vivo. Na hora marcada, havia uma quantidade grande de repórteres de TV, rádio e jornal; faixas, foguetes, a "furiosa" da Prefeitura tocando marchinhas e o povão lá, festejando. Um repórter mais apressado correu para o prefeito e tascou-lhe a pergunta à queima roupa, antes de todo mundo: Prefeito qual a importância dessa ponte? “Seo” Lúdio olhou de um lado e de outro e mandou ver: - Meu filho, essa ponte é importante porque passa gente, carro e bicicleta por cima; e muita água por baixo!

A nomeação e a queda

Ao lado dele, caminhei muito em CG
Um dia, “Seo” Lúdio mandou me chamar, queria uma conversa em reservado comigo. Eu era diretor de jornalismo da TV Guanandi, afiliada da Rede Bandeirantes e não tinha nenhuma proximidade com ele. Mesmo assim, fui. E me surpreendi com um convite para assumir a Secretaria de Comunicação da Prefeitura.

Foi uma longa conversa. Para cada argumento eu tinha um questionamento. Eu resistia muito à idéia de assumir um cargo tão importante sem ter intimidade com ele ou com sua equipe. Mas, ao final, me pôs em xeque: Olha aqui, você é um dos jornalistas que mais me critica. E apesar disso, é um dos que eu mais respeito. Não tenho o que reclamar de você. Sua crítica e bem feita. Eu estou tendo problemas com a minha comunicação. Então, já que você sabe tanto criticar, deve saber o que é preciso fazer para a Prefeitura funcionar bem nessa área. Eu terminei aceitando o convite.

Concluída a conversa, ele chamou o secretário de Administração e determinou a minha nomeação. No dia seguinte, o Diário Oficial trazia a nomeação de “Maranhão Viegas” para a Comunicação Municipal. Corri no prefeito para falar que acontecera um equívoco. O “Maranhão Viegas” não existia de fato. Eu usava apenas como nome profissional. Meu nome mesmo era Inorbel Viegas.

O prefeito não teve dúvidas, chamou o secretário de novo, mandou demitir o Maranhão e nomear o Inorbel Viegas. A passagem relâmpago do “Maranhão Viegas” pela Comunicação do “Seo” Lúdio causou estranheza em muita gente. Não lembro quantos amigos me procuraram querendo saber o que havia acontecido? Quem era aquele cara, de mesmo sobrenome, que tinha me substituído? Qual erro eu havia cometido para durar tão pouco no cargo?

Naqueles dias, o "Maranhão Viegas" deu muitas explicações. Mas o "Inorbel Viegas", felizmente, seguiu firme no cargo até o último dia do mandato do “Seo” Lúdio.

A pesquisa

Coletiva do "Seo" Lúdio era sempre muito animada.
A eleição já estava bem avançada e a candidata do “Seo” Lúdio não ia lá muito bem das pernas. Naquele dia, ao final da tarde, ele decidiu fazer uma das coisas que mais gostava - andar entre o povo, em uma feira de frutas e verduras. No meio da caminhada, foi alcançado por uma repórter de TV que lhe informou os resultados da mais recente pesquisa e do mau desempenho da candidata dele.

Ele sorriu e disse que já conhecia os números. Ela então perguntou se ele toparia uma entrevista. Ele disse: Respondo, desde que seja só uma pergunta, ainda tenho muito que andar com esse povão. Ela topou. Um sinal para o câmera, luz acesa, microfone em punho e ela mandou: “Seo” Lúdio como o senhor viu o resultado da última pesquisa? Ao que ele respondeu: Vi como você, pela televisão! E encerrou a conversa.
Ah, sim! Todas as fotos desse post são de Roberto Higa.

terça-feira, 15 de março de 2011

Esse nosso mundo louco

A música não é nova. É de 2008. Mas é um belo trabalho da Lonely Drifter Karen. Está no álbum Grass is singing. E é feita na medida para fechar a tarde. Porque o mundo anda cada vez mais louco. E eu me pergunto: Uma dose suave de loucura, como esta, por quê não?

Memórias da Profissão - O Césio 137 e eu

Quando setembro deste ano chegar, terão sido transcorridos 25 anos do primeiro grande acidente radioativo em terras brasileiras. O episódio, que ficou conhecido como “o acidente com Césio 137”, foi obra do descuido e do descaso.

Um equipamento de radioterapia abandonado por uma clínica particular foi parar em um ferro velho, aberto e manuseado por várias pessoas. A cor azulada do césio, no princípio, encantou adultos e crianças desavisadas.

Pouco tempo depois, começaram os sintomas da contaminação: vômitos, diarréias, dores pelo corpo. No começo, ninguém, nem as autoridades médicas, sabia do que se tratava. E o número de pessoas que entrava em contato com o material radioativo foi aumentando.

Ao final, pelas contas do governo, mais de 112 mil pessoas sofreram algum tipo de contaminação. Centenas de pessoas foram hospitalizadas. Pelo menos quatro morreram em pouco tempo, vítimas da contaminação pelo Césio 137. 13 toneladas de lixo radioativo foram recolhidas. Até hoje, centenas de pessoas sofrem os efeitos da contaminação.

Nessa época, eu era repórter da TV Morena, afiliada da Rede Globo, em Campo Grande, MS. E no auge das investigações e das análises do que havia ocorrido em Goiás, descobrimos que havia um equipamento similar ao que provocara o desastre de Goiânia, no Hospital Universitário, em Campo Grande.

A pauta investigativa caiu em minhas mãos. Ela pedia que se mostrasse como funcionava o equipamento e as condições de manutenção e de segurança do ambiente onde ele estava instalado. Lá fui eu, numa manhã de sexta-feira cumprir a pauta.

Na véspera, Mara havia viajado para o Sul. Fazia pouco que a gente tinha descoberto – ela estava grávida da nossa primeira filha, Mariana, e iria passar uns dias com a família em Santa Rosa. O presente o futuro tomavam conta da minha cabeça naquele instante. A família crescendo e a paixão pelo jornalismo também. Era um bom momento.

No Hospital Universitário, não demoramos a achar o setor onde estava a bomba de Césio 137. Ramon Carlos Pereira era o cinegrafista que me acompanhava desde os tempos do SBT. Formávamos uma dupla inseparável. Nos entendíamos por olhares. A imagem dele completava perfeitamente o meu texto. Quando fui contratado pela TV Morena, lutei e consegui que ele fosse também.

Eu, no começo de carreira. Ramon é o cinegrafista da direita.
O espaço era pequeno e a imagem pobre. Mas o Ramon era craque e, enquanto eu conversava com a médica responsável pelo setor, ele ia descobrindo os melhores ângulos, as melhores cenas. A doutora me explicava que o césio 137 era uma fina pastilha que ia para a máquina ladeada por duas outras pastilhas de cobre, no mesmo formato.

Enquanto me explicava, ela me mostrou as pastilhas de cobre e eu comecei a fazer a “passagem” da matéria segurando com uma pinça uma daquelas pastilhas de cobre. Passei o texto uma vez, ensaie o movimento de câmera e comecei a gravar. Enquanto gravava, percebi a chegada de uma enfermeira apavorada, gesticulando muito. Interrompi a gravação.

A mulher chamou a médica num canto e falou algo. Comecei a ficar preocupado. Eu e o Ramon. Quando a médica se voltou pra nós, o pavor se instalou. Ela estava pálida. E nos dizia ter ocorrido um erro grave. Aquilo que estava na pinça, em minhas mãos, não era cobre. Era o próprio Césio.

Meu desespero só não foi maior do que o do Ramon. Ele parou de gravar e saiu da sala correndo. Fiquei lá, meio atônito, sem saber direito o que fazer. Em um segundo, o filme da minha vida passou inteiro em minha mente. O futuro e o presente. A gravidez da Mara, minha profissão... Tudo.

Com o pouco de controle que ainda tinha, pensei: precisamos saber o nível da radiação. Deve haver um medidor geiger aqui. Não demorou muito e apareceu um. E já estava fora da sala, mas nunca mais esqueci o barulhinho que o aparelho fez, indicando a presença de radiação ao passar pelo meu corpo.

A notícia se espalhou no hospital. Houve um certo pânico. Nenhum maior do que o meu e do Ramon. Corremos para o carro. Aquela altura, a matéria tinha ficado em segundo plano. Nós havíamos virado notícia. No carro, sentimos a primeira medida da histeria – o motorista se recuava a dividir o espaço com a gente. Foi um custo convencê-lo a nos levar de volta à TV.

Quando chegamos à TV, todo mundo já sabia o que havia acontecido. Entramos na redação e ela estava vazia. Todos dispensados para não ter contato com a gente. Minha "chefa" imediata, Ecilda Stefanello, responsável pela sugestão da pauta, me deixou uma carta testamento. Ela pedia desculpas pela pauta e lamentava o ocorrido. No desespero, fui pra casa.

Agradeci a Deus pelo fato da Mara estar viajando. Antes de entrar em casa, tirei toda a roupa. A desinformação e a angústia sugeriam que aquela fosse uma boa medida. Passei direto para o quintal tentando não tocar em nada. Abri uma torneira e gastei uma barra de sabão inteira, num longo banho em que quase perdi a pele, de tanto me esfregar.

Foram as horas mais angustiantes da minha vida. Já no início da noite, consegui um contato com o coordenador da Comissão Nacional de Energia Nuclear, que estava em Campinas. As palavras dele me trouxeram um alívio imediato. De fato, eu e o Ramon havíamos sofrido exposição a material radioativo. Mas o tempo que permanecemos na sala, cerca de uma hora, e a quantidade do material existente ali não nos ofereciam um risco maior.

Naquela noite e nos dias seguintes, tive dificuldade para dormir. A vida só voltou ao normal depois de uma bateria de exames especiais que nos livrou do fantasma da radiação. A reportagem, acho, nunca foi ao ar. Tentei mover uma ação contra o hospital, mas não deu em nada. Eu e o Ramon reforçamos ainda mais a nossa amizade e fizemos ainda muitas reportagens juntos, até que cada um seguisse o seu caminho. A Ecilda, minha "chefa", virou minha sócia, numa jornada que durou mais de doze anos (mas isso é outra história).

Tempos depois, o incidente virou motivo de boas gargalhadas. Hoje, entretanto, me vem à mente e me remete ao sofrimento do povo japonês diante da enorme catástrofe atômica que se desenha. Há quase 25 anos eu vivi uma experiência infinitamente menor do que essa. Não menos apavorante, eu garanto.

segunda-feira, 14 de março de 2011

A solidão e o amor à vida

O que move alguém a lutar pela vida?

Neste fim de semana, fiquei comovido com duas histórias, distantes entre si, mas unidas por um tênue fio e um desejo comum. Nesses dois casos, fui levado a pensar que a solidão e o amor pela vida foram decisivos para que estas duas pessoas permanecessem vivos.

A primeira história vem do Japão, terra arrasada por um terremoto, seguido por um tsunami e, para angústia de todos, à beira de uma catástrofe nuclear sem precedentes.

Hiromitsu Shinkawa, de 65 anos, e sua esposa receberam o aviso de tsunami. Saíram  de casa casa a tempo. Mas, no meio do caminho, resolveram voltar para buscar alguns pertences. Foram apanhados pela onda gigante. Ela desapareceu. Ele resurgiu em alto mar, a 16 km da costa do Japão, dois dias depois do Tsunami. Durante esse tempo todo, agarrou-se ao que restou do telhado da casa dele. Foi salvo por um navio da guarda japonesa. (As cenas do resgate você assiste clicando no vídeo aí abaixo)




A segunda história vem do litoral brasileiro. Uma dupla de amigos fazia pesca submarina, próximo a uma ilha, em frente à praia de Ipanema. Um deles, Eduardo Quental, ao voltar à tona, bateu com a cabeça no barco e percebeu na hora: perdera todos os movimentos do corpo. Só a cabeça funcionava.

Eduardo sobreviveu por um milagre. E por conta da calma que teve, da disciplina a que se impôs e do amor que tem pela vida. Ficou à deriva por mais de 16 horas. Assim, levado pela correnteza, percorreu 21 km de  distância e foi salvo com a ajuda de dois pescadores, que seguiram as instruções que ele mesmo deu para que o salvamento acontecesse de forma correta. (A história completa, do Eduardo, você lê clicando no link aí abaixo)

http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1653263-15605,00-MERGULHADOR+PASSA+HORAS+FLUTUANDO+PARALISADO+DO+PESCOCO+PARA+BAIXO.html

São duas histórias distantes, como eu disse, unidas pela solidão e pelo amor à vida.

sábado, 12 de março de 2011

Tem Italiano no reggae

Pra começar a manhã de sábado, uma mostra do que o italiano Alborosie é capaz de fazer com um ritmo que nem é tanto a praia dos que nascem na "bota".

sexta-feira, 11 de março de 2011

O mundo de Carol

Caroline Viégas Domingues
Isa, minha irmã, acordou cedo e preocupada. Carol, filha dela, levantou tossindo muito e reclamando que a tosse deixava uma coceira por dentro. Isa observou, fez um chá, deu remédio e nada. Carol continuava reclamando muito.

Quando já estava pronta para ir ao médico, Isa resolveu conversar um pouco mais, investigar a tal coceira: Então, Carol, como é mesmo essa coceira? É assim, aqui por dentro - disse, apontando para a garganta. Aí, mãe, quando eu coço aqui, o "côço" muda de lugar e vem bem pra cá, ó! A preocupação deu lugar ao riso. A consulta foi suspensa e o "côço" mudou mais um pouquinho de lugar. Depois, parou.


Sentada à mesa da cozinha, Carol observa a mãe dela, ao telefone, falando com a minha mãe. Dona Isabel informa que não vale a pena sair de casa agora. O trânsito está parado, um engarrafamento imenso na via EPIA, que leva ao Plano Piloto, local de trabalho de milhares de pessoas que vivem na região Norte de Brasília (incluindo a Isa).

Diante do alerta, Isa agradece e informa: "Então, mãe, acho que vou ficar mais um pouco em casa. E vou aproveitar pra tomar o meu café com calma". Manda um beijo, se despede, desliga o telefone e vai em direção à mesa, onde está Carol. Começa a por o café na xícara e é interrompida: "Mamãe, também quero o meu café com isso". Com isso o que Carol? "Ué, você não falou que vai tomar café com calma? Eu também quero!"

De uma hora pra outra, Bilu e Sansão, um casal boxer que vive na casa da Isa e do Marcelo, começou a latir fortemente. Mais do que o normal. Correndo, os dois cães deram a volta no quintal, indo para a frente da casa. E seguiram latindo. Isa pede a Carol que verifique o que está acontecendo. Ela sai e volta, com um jeito meio blasé, absolutamente despreocupada, para informar: "Não é nada, mamãe. São só uns humanos passando lá na calçada." 

quarta-feira, 9 de março de 2011

Tempo incerto

Há tempo pra tudo.
Eu sei.
Às vezes, penso que não,
mas está escrito lá,
há tempo pra tudo, eu sei
tem hora de duvidar

Tem tempo de refletir,
tempo de desejar,
de chutar o balde, agora
tem hora de reclamar...

Tem hora de não saber
tem tempo de admirar
Tem tempo que é só pra ver
o tempo solto a passar.

Tem tempo de incerteza
Tempo de acertar
Tempo de mais do mesmo
tempo de inventar

Tempo de  olhar e ver
pra poder acreditar
Tem dia que falta tempo
O tempo que eu quis me dar
Tem dia que falta tempo
Ah! Deixa o tempo passar

domingo, 6 de março de 2011

Das coisas dele, que também são minhas

Ontem, eu e Mara vimos um filme sobre poesia. Noite que se vai. A algazarra de pássaros na janela do quarto amanhece o dia. Ontem, minha cabeça dormiu poesia. Hoje, acordei sonhando. Trafeguei as ruas de Manoel de Barros.

Queria que Margarida visse o que eu vi, pela beleza do que está lá. Pelo Manoel e pelo Joel Pizzini, dois dos amores dela. Noventa por cento é invenção. Só dez por cento é mentira.

Desenho de Manoel de Barros
Queria que Denise assistisse também. Porque um dia ela queria que eu explicasse poesia. E eu não expliquei. Poesia não se explica. Eu já tinha dito isso, mas agora, quem diz é Manoel. Poesia não é pra compreender. Poesia é pra incorporar.

Queria que a Simone assistisse. Porque ela me deu uma imagem de São Francisco, rodeado de pássaros. E eu descobri com Manoel que São Francisco monumentou os pássaros.

Desenho de Manoel de Barros
Queria que meu pai visse Manoel no filme. Porque ele só viu Manoel nas letras, nos livros. E acho que os dois têm coisas em comum. Acho que todo mundo merece um pouco de Manoel. Da poesia dele. Do olhar das coisas dele.

Depois de ontem, eu me entendo melhor. Porque corfirmei: há muito da poesia de Manoel em minhas coisas. Talvez porque eu seja besta de achar encanto em qualquer coisa, por mais simples que seja. E Manoel insiste na simplicidade das coisas.

Talvez porque um dia, por uma fração de segundo, eu me chamei Bernardo. Igual ao alterego dele. Bernardo, o guardador de coisas que inundam de beleza a cabeça de Manoel; das coisas que enfeitam e tornam riqueza todo rabisco que saia do lápis de Manoel.

O sono da biblioteca

por Innocêncio Viégas*

Meia noite completa. Aqui no Rancho todos dormem. Preparo-me também para dormir. Lembro-me que terei que fazer uma pesquisa e para ganhar tempo, decido separar os livros que usarei nesse trabalho.

Sigo devagar em direção à biblioteca, a minha “cela” de reflexão e em determinados momentos, minha clausura. Abro a porta vagarosamente para que os gonzos não despertem as inteligências maiores que, emparelhadas nas estantes parecem adormecidas permanentemente.

Não ligo a luz para não despertar os mais velhos. Risco um palito de fósforo e acendo a vela perfumada do castiçal que ali também dormita embelezando o ambiente.

Ouço vozes. Parece que estão num gostoso sarau. Assento-me sobre a velha cadeira de palhinha e fico a escutar o burburinho e só ai me dou conta de que a biblioteca não dorme. Aos ouvidos dos pobres mortais, ela parece dormitar, mas aos que aprenderam naqueles compêndios a arte da fuga da realidade material e se transportam para além fronteiras da alma, ela está desperta.

A chama da vela crepita tênue e parece crescer quando um daqueles altera a voz. É Castro Alves gritando: “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Pablo Neruda recorda a sua vidinha lá na Isla Negra e recita os seus poemas que inebriam o mundo.

Jorge Amado fala da sua Gabriela, das noitadas no Bataclam e lembra os bolinhos do bar Vesuvio do seu Nacibe, lembra do vinho em sua casa em companhia da Zélia e do Neruda. Julio Ribeiro que fora esquecido até por seus irmãos da Sublime Ordem, recomenda a leitura de sua obra prima, “A Carne”.

Thomas Mann tenta levar todos para a verdadeira iniciação em sua “A Montanha Mágica”. Josué Montello cantarola uma toada do Bumba-meu-Boi da Madre Deus, de Zé Garapé, ao mesmo tempo em que recorda os bons tempos estampados em “Os tambores de São Luis”.

Humberto de Campos, ah! Humberto de Campos diz ter ainda na boca, o gosto do doce de caju, dos cajus do seu saudoso cajueiro.

Domingos Souza, o querido “Chatô”, diz querer “um mundo sem fronteiras, um mundo de todo mundo com uma só Bandeira. Ele nem imagina que um dia apareceria a Internet que abriria todas as fronteiras do mundo. Gonçalves Dias, do exílio, recorda as palmeiras e seus sabiás. Relata a sua última viagem no navio Ville de Boulogne. Lopes Bogéa canta “Os pregões de São Luis” adoçando a boca de todos com o sorvete de taperebá.

Enquanto muitos se esbaldam como se estivessem em um animado lupanar, um violão cadenciado transforma aquela nostalgia em festa. São Vinicius e Tom Jobim cantando, e a todos prometendo “um dia pra vadiar” com água de côco e cachaça de rolha, na areia de Itapoã. Zé Limeira, o poeta do absurdo, com a sua viola, exalta em versos as gostosuras da Feira de Caruaru onde, segundo Luiz Gonzaga, “tem tudo o que a gente quer”.

Drummond se pergunta: “e agora José?” Jean Genet conta suas aventuras na prisão e recomenda o seu “Diário de um ladrão” que no dizer de Sartre devia ser lido como um livro poético que, não sendo arte literária é um meio de salvação. Xico Trolha e Catellani lembram Murilo Pinto e seus tangos em Buenos Aires. Shakespeare lamenta a interpretação dada ao seu drama “Romeu e Julieta”. Fernando Sabino sorri e o chama de “O grande mentecapto”.

Hermann Hesse diz que esse conto era “Para ler e guardar”. Cervantes, na pessoa de Dom Quixote chora a sua saudosa Dulcinéia. James Joyce recomenda o seu “Ulisses” o que desagrada a Fernando Pessoa que diz ser muito volumoso e difícil de alguém o ler. Camões, ofendido reclama de Pessoa e lhe fala do seu “Os Lusíadas” e suas longas estâncias. Patativa do Assaré ri de todos e pede permissão para relatar o encontro, nos seus rimados cordéis.

Dostoievski fala dos “Irmãos Karamázovi, Hemingway com saudades de Cuba, de La Bodeguita e do seu eterno daiquiri, diz que “Paris é uma festa”. Boccaccio relê o seu “Decamerom”, Julio Dantas sorri admirado comparando aquele momento com sua “A ceia dos cardeais”.

Raquel de Queiroz lidera as meninas, ao lado de Clarice, Guiomar Chianca, Dolores Duram, Cora Coralina e Florbela Espanca, que suspira e diz: “ai as almas dos poetas, não as entende ninguém; são almas de violetas que são poetas também".

José de Alencar chora a sua Iracema e diz guardar ainda o gosto de mel dos seus lábios. Gregório de Matos continua sendo “O boca do inferno”. Machado de Assis – o bruxo do Cosme Velho – lembra a “missa do galo” e suas aventuras amorosas. Marcel Proust continua “Em busca do tempo perdido”. Robert Louis Stevenson não sai da sua “A Ilha do Tesouro”. Jorge Luis Borges, sem a bengala, não dava sinais de ser cego, lia trechos do seu livro “Atlas”, escrito com Maria Kodama.

Saramago, recém chegado, traz nas mãos o seu livro “Caim”, perseguido pela Igreja Católica. Herman Melvile lembra da sua baleia Moby Dick. Daniel Defoe grita por Robinson Crusoé. Rui Barbosa, imponente lê o seu “Discurso aos moços” o que ele não fez em vida. J.D. Salinger preocupado por não entenderem o seu livro, “O apanhador no campo de centeio”, por ser uma narrativa de um jovem de 17 anos. Peter Kelder ensina a todos os exercícios da sua “A fonte da Juventude”. Franz Kafka teima com a sua “Metamorfose”.

Jack London briga com o comandante da escuna “Ghost” – Lobo Larsen- o que ele chama de “O lobo do mar” e o convida para um trago de rum, em seu barco fantasma. Alex Munthe recomenda a leitura do seu livro. “O livro de San Michele” escrito em 1928. Sempre sorridente chega Armando Nogueira feliz com o seu livro “O canto dos meus amores” elogiando Garrincha, a quem chama “O poeta do drible”.

No intervalo das libações João Ferreira de Almeida aconselha aos ateus, a leitura da Bíblia Sagrada na sua versão. Vinícius o provocando canta... “eu que não creio, peço a Deus por minha gente”. Maomé, balançando a cabeça lê o Alcorão pregando a adoração ao Deus único. Allan Cardec diz: este livro – O dos espíritos – é de todos nós.

Vitor Hugo fala do seu “Os miseráveis”. Goethe recorda o diálogo de Deus com Mefistófeles. Balzac continua com suas “Ilusões perdidas” e Dante tenta organizar a sua “Divina Comédia”.

Centenas deles, ainda por marcar presença se contentam em ouvir os mais afoitos.

Lá no fundo deste Templo aos livros, quase esquecido, José Middlin, com os originais de “Vidas Secas” nas mãos, diz aos escritores: vocês são todos meus.

O meu galo – o Cigano – amiuda o canto aqui no Rancho, nas montanhas do Velho Duca, anunciando um novo dia. O meu velho carrilhão, guardião constante da biblioteca faz soar três compassadas badaladas.

Acordei. A vela do castiçal da biblioteca, igual à vela de Saramago “lança uma chama mais forte antes de se extinguir”.

Levanto a cabeça ainda sonolento e passo a constatar que a biblioteca, com todo o seu encanto está adormecendo. O deus dos livros recolheu-se para o Olimpo e entregou-se também aos braços de Morfeu.

A biblioteca dorme.

Innocêncio Viégas* é maranhense, da Madre D'eus. É membro da Academia de Letras de Brasília e da Academia Maçônica de Letras do Brasil. É fundador da Confraria dos Amigos da Boa Mesa. É marido de Isabel, minha mãe. E é meu pai.

sábado, 5 de março de 2011

Simples assim

Manoel de Barros
A palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Só dez por cento é mentira

A primeira publicação deste blog aconteceu no dia 17 de janeiro de 2010. Por absoluto descuido meu, completei um ano de blog sem registrar a data. Um descuido desses, por exemplo, em um namoro ou casamento, é falta grave.

Esquecer uma data pode significar uma grande dor de cabeça. No mínimo, algumas horas de "beiço", de cara virada. Mas aqui, na minha relação de amor virtual com o blog, eu me esqueço e me perdoo, sem maiores problemas.

Não deu pra comemorar um ano? Vamos comemorar um ano, um mês e alguns dias. E não tem forma melhor de comemorar do que a incrível coincidência que acabo de descobrir.

Como eu disse lá em cima, a primeira publicação aconteceu em janeiro de 2010 e tratava de uma entrevista que fiz com o poeta e amigo Manoel de Barros. Para ler a entrevista, clic aqui.

Pois hoje, vasculhando a blogosfera, decobri que amanhã, às nove da noite, o Canal Brasil vai exibir o filme: "Só dez por cento é mentira", que conta um pouco a história de Manoel e de sua poesia.

Quer jeito melhor de comemorar a curta existência do blog? O trailer do filme tá aí embaixo. Não esqueça, não perca. Eu garanto que carnaval e poesia são ótima combinação. Ainda mais se for poesia de Manoel.




Memórias de carnaval

Minha fase de folião ficou lá atrás. Quando eu ainda era não mais que um menino. Até os dez, acompanhei o movimento de carnaval na Madre D'eus, lá em São Luis, por entre as grades do portão de minha casa. Por ali, vi passar os casais do Baralho; vi a Turma do Quinto; vi os Fuzileiros da Fuzarca; vi os Apaches; vi os blocos tradicionais - coisa que só no carnaval do Maranhão há.

Depois, mais tarde um pouco, aos 15 anos, voltei ao Maranhão, atravessei a rua e acompanhei meus amigos de infância - Jorge, Bumbunga, Nildo, Josimar, Carlinhos Carretel, Junior Carajás e tantos outros, no Caroçudo. Nosso bloco saía da Rui Barbosa, entrava no Beco do Gavião, passava pela Praça do Cemitério, descia o Lira, entrava no Come Fedendo, caía na Areinha, subia o Morro do Querozene,  e voltava, para a Madre D'eus.

Tempo em que não havia limites físicos. O corpo, uma máquina jovem, novinha folha, aguentava tudo. E pedia mais. Cinco dias de folia eram muito pouco.

Hoje, me limito a olhar, recordar e gostar de ter vivido tudo aquilo. Hoje, me entrego com mais afinco à folia das letras invadindo o espaço em branco da tela do computador, fazendo meu carnaval virtual. Que os Deuses da Folia conservem viva a minha memória. Que os meus amigos de infância continuem a produzir música e alegria de forma natural. Que o carnaval seja sempre uma festa popular, pra pular e brincar. E que eu siga desfrutando do privilégio de me lembrar das coisas e traduzi-las com a mesma paixão com que as vivi.

Nas fotos aí abaixo, dois momentos de resgate: Primeiro, invadindo o ensaio do bloco tradicional "Os Feras", com meu filho Gabriel experimentando pela primeira vez a sensação de tocar um "tamborzão". Na outra, o reencontro com Jorge Luis Coutinho, meu primo da Madre D'eus, companheiro de muitas e inesquecíveis jornadas. As fotos foram feitas na minha passagem por São Luis, em 2009, 26 anos depois de ter estado lá pela última vez.


quinta-feira, 3 de março de 2011

Devagar com o andor...

O padre sabia: Na época de carnaval, a igreja se esvazia. Os fiéis ficam menos fiéis, abrem exceções, deixam o sacro pelo profano, sem pestanejar, sem sentir dor. Na quarta-feira de cinzas pedem perdão, raciocinam os mais práticos, ficando livres de todos os pecados da carne.

Mas isso nunca foi motivo para tirar o ânimo do padre. Pelo contrário. A cada ano, o carnaval se transformava em um laboratório para experimentos, para as estratégias de marketing. Sim, se considerava um estrategista de batinas. A cada experimento, a cada ação bem-sucedida, imaginava – “Quem tem marketing, vai a Roma...”. E como ensina um ditado muito popular no futebol, “a melhor defesa é o ataque”, o padre resolveu atacar: marcou uma procissão para a sexta-feira “magra”, um dia antes do primeiro final de semana do carnaval.

As carolas foram convocadas para a comissão de frente, o andor recebeu tratamento de “carro Abre Alas”, flores e papéis laminados verde e rosa, a imagem da Nossa Senhora lá no alto, tinindo de lindeza. Dezenas de fiéis engrossando o cordão (alguns, com cara de contrariados, mas firmes na profissão da fé) a bandinha afinada, com meia dúzia de instrumentos de sopro, e o padre...

Lépido e faceiro, o padre estava pronto para descer a ladeira, com a sua legião de fiéis. Um ar de desafio e satisfação no rosto, como se estivesse cometendo uma profanação às avessas: a passarela do samba abria espaço para a força da fé.

A um leve sinal do padre, o cortejo saiu. Orações contritas no início, quase um murmúrio, foram ganhando corpo e altura. Entremeando orações e cantos religiosos, a procissão ganhou volume. O padre feliz. A fé vencendo o samba de enredo.

Ruas tortas, passos largos, o grupo se aproxima de um bar. Na porta, um bêbado solitário, já na terceira garrafa de cerveja, se apruma pra ver o movimento. O padre olhou com um canto de olho. Fez que viu e seguiu em frente. O bêbado pra angústia de todos, começou a gritar e gesticular: Olha a mangueira aí, gente! Olha a mangueira aí, gente!

O padre, fuzilando com os olhos, interrompeu a caminhada, aproximou-se da mesa do bar e passou uma descompostura no bêbado. Quase excomungado, ele resignou-se. O padre assumiu o seu posto e a procissão seguiu. Mal retomou o percurso, a imagem da santa, que ia sobre o andor verde e rosa, bateu em um galho de uma velha árvore. Diante dos olhos incrédulos de todos, a santa deu duas piruetas antes de se espatifar no chão. O silêncio foi quebrado pelos gritos do bêbado: Eu bem que avisei: Olha a mangueira ai, gente!!

quarta-feira, 2 de março de 2011

Os garotos de Manhattan

Eles se juntaram em 1999. Já nasceram famosos porque vinham de famílias americanas, de classe média alta. Começaram tocando em festas, em Nova York. Daí a fazer fama na cidade, foi um pulo. Em 2001, viraram um fenômeno mundial. Estou falando dos meninos do "The Strokes".

Justiça seja feita, os caras são bons no que fazem. Tocam bem e cantam melhor ainda. Viraram cults porque foram comparados com Lou Reed e a sua banda Velvet Underground, mistura alternativa de sucesso e bom gosto.

Eles rejeitam os rótulos, mas contribuem para a fama. Ao longo dos últimos anos gravaram muito pouco. Ficaram em quatro discos, desde que surgiram para o mundo da música. Passaram seis anos sem gravar. O quinto disco está saindo agora, "Angels". E por isso já provocou um furor no meio da gurizada.

O lançamento da música de trabalho, mês passado, congestionou a internet por várias horas. Todo mundo querendo baixar o arquivo ao mesmo tempo. Agora, mais precisamente, hoje, eles liberaram o vídeo da música “Under Cover of Darkness”, que vai fazer parte do disco “Angels”, previsto para chegar às lojas no dia 22 deste mês.

Não precisa entrar na fila, nem se desesperar. Dê um clic e assista o vídeo logo aí abaixo. Depois, mais calmo raciocine comigo: Pensando bem, até que a gente compreende a correria da gurizada, não é mesmo?

E, quer saber o que mais? O baterista do grupo é brasileiro, o Fabrizio Moretti. De vez em quanto, ele toca junto com Rodrigo Amarante, ex-integrante da banda “Los Hermanos”. Os dois quando se juntam chamam essa brincadeira séria de “Little Joy”, outro candidato a grupo Cult. Mas isso é outra história. Por enquanto, curta aí: “Under cover of Darkness”.

terça-feira, 1 de março de 2011

Salve, Rio de Janeiro!

O Rio de Janeiro comemora hoje seus 446 anos de existência. Cartão Postal do Brasil. Palco de grandes tragédias. Campo minado do tráfico. O Rio é uma nau de ambiguidades. O belo e o feio convivendo em desarmonia constante. E a cidade resistindo.

Berço de poetas; das mais lindas cantorias, o Rio se completa e se reinaugura a cada dia. Nestes 446 anos, aqui de longe, a gente torce por um tempo melhor, que lhe faça jus ao passado e que lhe justifique o futuro.

A cidade merece. Sua gente merece. Pra reforçar o pedido, começo o dia com uma justa homenagem ao Rio de Janeiro. Uma oração em forma de música, na voz de dois grandes mestres da MPB, Gil e Milton. Para o Rio, pelo Rio, Sebastião.