quinta-feira, 3 de março de 2011

Devagar com o andor...

O padre sabia: Na época de carnaval, a igreja se esvazia. Os fiéis ficam menos fiéis, abrem exceções, deixam o sacro pelo profano, sem pestanejar, sem sentir dor. Na quarta-feira de cinzas pedem perdão, raciocinam os mais práticos, ficando livres de todos os pecados da carne.

Mas isso nunca foi motivo para tirar o ânimo do padre. Pelo contrário. A cada ano, o carnaval se transformava em um laboratório para experimentos, para as estratégias de marketing. Sim, se considerava um estrategista de batinas. A cada experimento, a cada ação bem-sucedida, imaginava – “Quem tem marketing, vai a Roma...”. E como ensina um ditado muito popular no futebol, “a melhor defesa é o ataque”, o padre resolveu atacar: marcou uma procissão para a sexta-feira “magra”, um dia antes do primeiro final de semana do carnaval.

As carolas foram convocadas para a comissão de frente, o andor recebeu tratamento de “carro Abre Alas”, flores e papéis laminados verde e rosa, a imagem da Nossa Senhora lá no alto, tinindo de lindeza. Dezenas de fiéis engrossando o cordão (alguns, com cara de contrariados, mas firmes na profissão da fé) a bandinha afinada, com meia dúzia de instrumentos de sopro, e o padre...

Lépido e faceiro, o padre estava pronto para descer a ladeira, com a sua legião de fiéis. Um ar de desafio e satisfação no rosto, como se estivesse cometendo uma profanação às avessas: a passarela do samba abria espaço para a força da fé.

A um leve sinal do padre, o cortejo saiu. Orações contritas no início, quase um murmúrio, foram ganhando corpo e altura. Entremeando orações e cantos religiosos, a procissão ganhou volume. O padre feliz. A fé vencendo o samba de enredo.

Ruas tortas, passos largos, o grupo se aproxima de um bar. Na porta, um bêbado solitário, já na terceira garrafa de cerveja, se apruma pra ver o movimento. O padre olhou com um canto de olho. Fez que viu e seguiu em frente. O bêbado pra angústia de todos, começou a gritar e gesticular: Olha a mangueira aí, gente! Olha a mangueira aí, gente!

O padre, fuzilando com os olhos, interrompeu a caminhada, aproximou-se da mesa do bar e passou uma descompostura no bêbado. Quase excomungado, ele resignou-se. O padre assumiu o seu posto e a procissão seguiu. Mal retomou o percurso, a imagem da santa, que ia sobre o andor verde e rosa, bateu em um galho de uma velha árvore. Diante dos olhos incrédulos de todos, a santa deu duas piruetas antes de se espatifar no chão. O silêncio foi quebrado pelos gritos do bêbado: Eu bem que avisei: Olha a mangueira ai, gente!!

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