por Innocêncio Viégas*
Meia noite completa. Aqui no Rancho todos dormem. Preparo-me também para dormir. Lembro-me que terei que fazer uma pesquisa e para ganhar tempo, decido separar os livros que usarei nesse trabalho.
Sigo devagar em direção à biblioteca, a minha “cela” de reflexão e em determinados momentos, minha clausura. Abro a porta vagarosamente para que os gonzos não despertem as inteligências maiores que, emparelhadas nas estantes parecem adormecidas permanentemente.
Não ligo a luz para não despertar os mais velhos. Risco um palito de fósforo e acendo a vela perfumada do castiçal que ali também dormita embelezando o ambiente.
Ouço vozes. Parece que estão num gostoso sarau. Assento-me sobre a velha cadeira de palhinha e fico a escutar o burburinho e só ai me dou conta de que a biblioteca não dorme. Aos ouvidos dos pobres mortais, ela parece dormitar, mas aos que aprenderam naqueles compêndios a arte da fuga da realidade material e se transportam para além fronteiras da alma, ela está desperta.
A chama da vela crepita tênue e parece crescer quando um daqueles altera a voz. É Castro Alves gritando: “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Pablo Neruda recorda a sua vidinha lá na Isla Negra e recita os seus poemas que inebriam o mundo.
Jorge Amado fala da sua Gabriela, das noitadas no Bataclam e lembra os bolinhos do bar Vesuvio do seu Nacibe, lembra do vinho em sua casa em companhia da Zélia e do Neruda. Julio Ribeiro que fora esquecido até por seus irmãos da Sublime Ordem, recomenda a leitura de sua obra prima, “A Carne”.
Thomas Mann tenta levar todos para a verdadeira iniciação em sua “A Montanha Mágica”. Josué Montello cantarola uma toada do Bumba-meu-Boi da Madre Deus, de Zé Garapé, ao mesmo tempo em que recorda os bons tempos estampados em “Os tambores de São Luis”.
Humberto de Campos, ah! Humberto de Campos diz ter ainda na boca, o gosto do doce de caju, dos cajus do seu saudoso cajueiro.
Domingos Souza, o querido “Chatô”, diz querer “um mundo sem fronteiras, um mundo de todo mundo com uma só Bandeira. Ele nem imagina que um dia apareceria a Internet que abriria todas as fronteiras do mundo. Gonçalves Dias, do exílio, recorda as palmeiras e seus sabiás. Relata a sua última viagem no navio Ville de Boulogne. Lopes Bogéa canta “Os pregões de São Luis” adoçando a boca de todos com o sorvete de taperebá.
Enquanto muitos se esbaldam como se estivessem em um animado lupanar, um violão cadenciado transforma aquela nostalgia em festa. São Vinicius e Tom Jobim cantando, e a todos prometendo “um dia pra vadiar” com água de côco e cachaça de rolha, na areia de Itapoã. Zé Limeira, o poeta do absurdo, com a sua viola, exalta em versos as gostosuras da Feira de Caruaru onde, segundo Luiz Gonzaga, “tem tudo o que a gente quer”.
Drummond se pergunta: “e agora José?” Jean Genet conta suas aventuras na prisão e recomenda o seu “Diário de um ladrão” que no dizer de Sartre devia ser lido como um livro poético que, não sendo arte literária é um meio de salvação. Xico Trolha e Catellani lembram Murilo Pinto e seus tangos em Buenos Aires. Shakespeare lamenta a interpretação dada ao seu drama “Romeu e Julieta”. Fernando Sabino sorri e o chama de “O grande mentecapto”.
Hermann Hesse diz que esse conto era “Para ler e guardar”. Cervantes, na pessoa de Dom Quixote chora a sua saudosa Dulcinéia. James Joyce recomenda o seu “Ulisses” o que desagrada a Fernando Pessoa que diz ser muito volumoso e difícil de alguém o ler. Camões, ofendido reclama de Pessoa e lhe fala do seu “Os Lusíadas” e suas longas estâncias. Patativa do Assaré ri de todos e pede permissão para relatar o encontro, nos seus rimados cordéis.
Dostoievski fala dos “Irmãos Karamázovi, Hemingway com saudades de Cuba, de La Bodeguita e do seu eterno daiquiri, diz que “Paris é uma festa”. Boccaccio relê o seu “Decamerom”, Julio Dantas sorri admirado comparando aquele momento com sua “A ceia dos cardeais”.
Raquel de Queiroz lidera as meninas, ao lado de Clarice, Guiomar Chianca, Dolores Duram, Cora Coralina e Florbela Espanca, que suspira e diz: “ai as almas dos poetas, não as entende ninguém; são almas de violetas que são poetas também".
José de Alencar chora a sua Iracema e diz guardar ainda o gosto de mel dos seus lábios. Gregório de Matos continua sendo “O boca do inferno”. Machado de Assis – o bruxo do Cosme Velho – lembra a “missa do galo” e suas aventuras amorosas. Marcel Proust continua “Em busca do tempo perdido”. Robert Louis Stevenson não sai da sua “A Ilha do Tesouro”. Jorge Luis Borges, sem a bengala, não dava sinais de ser cego, lia trechos do seu livro “Atlas”, escrito com Maria Kodama.
Saramago, recém chegado, traz nas mãos o seu livro “Caim”, perseguido pela Igreja Católica. Herman Melvile lembra da sua baleia Moby Dick. Daniel Defoe grita por Robinson Crusoé. Rui Barbosa, imponente lê o seu “Discurso aos moços” o que ele não fez em vida. J.D. Salinger preocupado por não entenderem o seu livro, “O apanhador no campo de centeio”, por ser uma narrativa de um jovem de 17 anos. Peter Kelder ensina a todos os exercícios da sua “A fonte da Juventude”. Franz Kafka teima com a sua “Metamorfose”.
Jack London briga com o comandante da escuna “Ghost” – Lobo Larsen- o que ele chama de “O lobo do mar” e o convida para um trago de rum, em seu barco fantasma. Alex Munthe recomenda a leitura do seu livro. “O livro de San Michele” escrito em 1928. Sempre sorridente chega Armando Nogueira feliz com o seu livro “O canto dos meus amores” elogiando Garrincha, a quem chama “O poeta do drible”.
No intervalo das libações João Ferreira de Almeida aconselha aos ateus, a leitura da Bíblia Sagrada na sua versão. Vinícius o provocando canta... “eu que não creio, peço a Deus por minha gente”. Maomé, balançando a cabeça lê o Alcorão pregando a adoração ao Deus único. Allan Cardec diz: este livro – O dos espíritos – é de todos nós.
Vitor Hugo fala do seu “Os miseráveis”. Goethe recorda o diálogo de Deus com Mefistófeles. Balzac continua com suas “Ilusões perdidas” e Dante tenta organizar a sua “Divina Comédia”.
Centenas deles, ainda por marcar presença se contentam em ouvir os mais afoitos.
Lá no fundo deste Templo aos livros, quase esquecido, José Middlin, com os originais de “Vidas Secas” nas mãos, diz aos escritores: vocês são todos meus.
O meu galo – o Cigano – amiuda o canto aqui no Rancho, nas montanhas do Velho Duca, anunciando um novo dia. O meu velho carrilhão, guardião constante da biblioteca faz soar três compassadas badaladas.
Acordei. A vela do castiçal da biblioteca, igual à vela de Saramago “lança uma chama mais forte antes de se extinguir”.
Levanto a cabeça ainda sonolento e passo a constatar que a biblioteca, com todo o seu encanto está adormecendo. O deus dos livros recolheu-se para o Olimpo e entregou-se também aos braços de Morfeu.
A biblioteca dorme.
Innocêncio Viégas* é maranhense, da Madre D'eus. É membro da Academia de Letras de Brasília e da Academia Maçônica de Letras do Brasil. É fundador da Confraria dos Amigos da Boa Mesa. É marido de Isabel, minha mãe. E é meu pai.
Maranhão, agora entendi a origem de seu texto maravilhoso, objetivo e poético. Tens para quem puxar. Tens pedigree. Parabéns aos dois, pai e filho. Grande abraço.
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