terça-feira, 15 de março de 2011

Memórias da Profissão - O Césio 137 e eu

Quando setembro deste ano chegar, terão sido transcorridos 25 anos do primeiro grande acidente radioativo em terras brasileiras. O episódio, que ficou conhecido como “o acidente com Césio 137”, foi obra do descuido e do descaso.

Um equipamento de radioterapia abandonado por uma clínica particular foi parar em um ferro velho, aberto e manuseado por várias pessoas. A cor azulada do césio, no princípio, encantou adultos e crianças desavisadas.

Pouco tempo depois, começaram os sintomas da contaminação: vômitos, diarréias, dores pelo corpo. No começo, ninguém, nem as autoridades médicas, sabia do que se tratava. E o número de pessoas que entrava em contato com o material radioativo foi aumentando.

Ao final, pelas contas do governo, mais de 112 mil pessoas sofreram algum tipo de contaminação. Centenas de pessoas foram hospitalizadas. Pelo menos quatro morreram em pouco tempo, vítimas da contaminação pelo Césio 137. 13 toneladas de lixo radioativo foram recolhidas. Até hoje, centenas de pessoas sofrem os efeitos da contaminação.

Nessa época, eu era repórter da TV Morena, afiliada da Rede Globo, em Campo Grande, MS. E no auge das investigações e das análises do que havia ocorrido em Goiás, descobrimos que havia um equipamento similar ao que provocara o desastre de Goiânia, no Hospital Universitário, em Campo Grande.

A pauta investigativa caiu em minhas mãos. Ela pedia que se mostrasse como funcionava o equipamento e as condições de manutenção e de segurança do ambiente onde ele estava instalado. Lá fui eu, numa manhã de sexta-feira cumprir a pauta.

Na véspera, Mara havia viajado para o Sul. Fazia pouco que a gente tinha descoberto – ela estava grávida da nossa primeira filha, Mariana, e iria passar uns dias com a família em Santa Rosa. O presente o futuro tomavam conta da minha cabeça naquele instante. A família crescendo e a paixão pelo jornalismo também. Era um bom momento.

No Hospital Universitário, não demoramos a achar o setor onde estava a bomba de Césio 137. Ramon Carlos Pereira era o cinegrafista que me acompanhava desde os tempos do SBT. Formávamos uma dupla inseparável. Nos entendíamos por olhares. A imagem dele completava perfeitamente o meu texto. Quando fui contratado pela TV Morena, lutei e consegui que ele fosse também.

Eu, no começo de carreira. Ramon é o cinegrafista da direita.
O espaço era pequeno e a imagem pobre. Mas o Ramon era craque e, enquanto eu conversava com a médica responsável pelo setor, ele ia descobrindo os melhores ângulos, as melhores cenas. A doutora me explicava que o césio 137 era uma fina pastilha que ia para a máquina ladeada por duas outras pastilhas de cobre, no mesmo formato.

Enquanto me explicava, ela me mostrou as pastilhas de cobre e eu comecei a fazer a “passagem” da matéria segurando com uma pinça uma daquelas pastilhas de cobre. Passei o texto uma vez, ensaie o movimento de câmera e comecei a gravar. Enquanto gravava, percebi a chegada de uma enfermeira apavorada, gesticulando muito. Interrompi a gravação.

A mulher chamou a médica num canto e falou algo. Comecei a ficar preocupado. Eu e o Ramon. Quando a médica se voltou pra nós, o pavor se instalou. Ela estava pálida. E nos dizia ter ocorrido um erro grave. Aquilo que estava na pinça, em minhas mãos, não era cobre. Era o próprio Césio.

Meu desespero só não foi maior do que o do Ramon. Ele parou de gravar e saiu da sala correndo. Fiquei lá, meio atônito, sem saber direito o que fazer. Em um segundo, o filme da minha vida passou inteiro em minha mente. O futuro e o presente. A gravidez da Mara, minha profissão... Tudo.

Com o pouco de controle que ainda tinha, pensei: precisamos saber o nível da radiação. Deve haver um medidor geiger aqui. Não demorou muito e apareceu um. E já estava fora da sala, mas nunca mais esqueci o barulhinho que o aparelho fez, indicando a presença de radiação ao passar pelo meu corpo.

A notícia se espalhou no hospital. Houve um certo pânico. Nenhum maior do que o meu e do Ramon. Corremos para o carro. Aquela altura, a matéria tinha ficado em segundo plano. Nós havíamos virado notícia. No carro, sentimos a primeira medida da histeria – o motorista se recuava a dividir o espaço com a gente. Foi um custo convencê-lo a nos levar de volta à TV.

Quando chegamos à TV, todo mundo já sabia o que havia acontecido. Entramos na redação e ela estava vazia. Todos dispensados para não ter contato com a gente. Minha "chefa" imediata, Ecilda Stefanello, responsável pela sugestão da pauta, me deixou uma carta testamento. Ela pedia desculpas pela pauta e lamentava o ocorrido. No desespero, fui pra casa.

Agradeci a Deus pelo fato da Mara estar viajando. Antes de entrar em casa, tirei toda a roupa. A desinformação e a angústia sugeriam que aquela fosse uma boa medida. Passei direto para o quintal tentando não tocar em nada. Abri uma torneira e gastei uma barra de sabão inteira, num longo banho em que quase perdi a pele, de tanto me esfregar.

Foram as horas mais angustiantes da minha vida. Já no início da noite, consegui um contato com o coordenador da Comissão Nacional de Energia Nuclear, que estava em Campinas. As palavras dele me trouxeram um alívio imediato. De fato, eu e o Ramon havíamos sofrido exposição a material radioativo. Mas o tempo que permanecemos na sala, cerca de uma hora, e a quantidade do material existente ali não nos ofereciam um risco maior.

Naquela noite e nos dias seguintes, tive dificuldade para dormir. A vida só voltou ao normal depois de uma bateria de exames especiais que nos livrou do fantasma da radiação. A reportagem, acho, nunca foi ao ar. Tentei mover uma ação contra o hospital, mas não deu em nada. Eu e o Ramon reforçamos ainda mais a nossa amizade e fizemos ainda muitas reportagens juntos, até que cada um seguisse o seu caminho. A Ecilda, minha "chefa", virou minha sócia, numa jornada que durou mais de doze anos (mas isso é outra história).

Tempos depois, o incidente virou motivo de boas gargalhadas. Hoje, entretanto, me vem à mente e me remete ao sofrimento do povo japonês diante da enorme catástrofe atômica que se desenha. Há quase 25 anos eu vivi uma experiência infinitamente menor do que essa. Não menos apavorante, eu garanto.

7 comentários:

  1. Meu irmão,
    hoje, lendo o texto, imaginando as cenas e te conhecendo bem, deu vontade de rir muito, mas voltando no tempo, acho que nós, a família, nunca soubemos desse episódio, pelo menos não na época do acontecido, senão o caos estaria completamente instalado.
    Ainda bem que foi só um susto.
    Bjos,
    Isa

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  2. Sabe, Isa, acho que o susto foi tão grande que nem me passou pela cabeça botar vocês na roda. A Mara msmo, só ficou sabendo quando voltou de viagem. Enfim, foi um susto solitário. Mas, que susto!

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  3. que loucura,com o cesio naun se brinca. é nesses tempos de crise du nucleario que a gente se da conta que é verdadeiramente perigoso a radiaçao. eu mesmo que vivo aqui França, um pais que utilisa muito o nucleario, as veses me pergunto se o mais inteligente sria de viver longe de tudo isso.

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  4. Oi, Igor, é isso mesmo. Você aí na França, nós aqui no Brasil... É hora de pensarmos a melhor maneira de buscar energia alternativa sem correr tanto risco.

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  5. que coisa, cara...
    dessa eu não sabia!
    não entendi porque esse hospital não sofreu uma punição...

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  6. Meu amigo Maranhão, quantas agruras passam os jornalistas no cumprimento do dever. Quando vi o que estava acontecendo no Japão lembrei dessa história que você me contou ainda durante o periodo de campanha.Quando a gente acumula alguns anos de profissão sempre temos bons "causos" pra contar, mas, esse que você relatou é amendrotador deverás. Que bom que nada grave aconteceu com você e seu cinegrafista, pois, senão, talvez, eu não tivesse tido a satisfação de conhece-lo e trabalhar ao seu lado. Viva meu amigo poeta Maranhão. Muitos anos de vida.

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  7. Você é fera , cara ! Não é qualquer um que tem coragem pra fazer uma matéria dessas , em um período em que a ignorância sobre o manuseio de substâncias nucleares ( inclusive por médicos especializados ) era enorme aqui no Brasil . Parabéns pela coragem meu bruxo !

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