domingo, 25 de dezembro de 2011

É tempo de papagaios

por Innocêncio Viégas*

A tarde estava radiante; céu de brigadeiro; sol de piquenique; e um vento norte agitando as folhas de todos os coqueiros. Peguei o meu papagaio – pipa – e fui para a barreira, uma elevação que deixava a rua lá embaixo.

O vento convidava para empinar o meu papagaio colorido feito de papel de seda nas cores verde, vermelha e amarela, feito por mim, o que era muito importante. No céu, a jamanta do Clóvis Baleia – um coroa que levava consigo todos os meninos do meu bairro para ver as suas belas lanceadas – reinava absoluta “matando e cortando” os pobres papagaios de linha vinte, marca “Olho”, menos resistente.

A minha vontade era não deixar a jamanta matar e cortar o meu papagaio e, se possível, o que era impossível, cortar a linda jamanta de linha zero, que guinava soberba ao sabor do vento ameaçando os nossos pequenos papagaios.

A jamanta – um enorme papagaio feito com talas de madeira leve – vinha varrendo o céu e cortando os papagaios. Alguns, humilhados, estavam pendurados em sua linha. Era o que chamávamos “matar e cortar”. Matar era enroscar a rabiola na linha, e cortar era arrebentar a linha do outro.

A grande diferença que eu achava nos meus 10 anos era que a jamanta o Clóvis comprava na venda do Zezé Caveira, no Largo de Santiago, e o meu papagaio era feito por mim, e eu o dominava em todas as manobras, tanto para a direita quanto para a esquerda e até contra o vento, o que nós chamávamos de “tentear”, isto é, ir levando o “pássaro” para onde se queria, e assim fugir dos ataques da pesada jamanta, o que irritava o velho mestre Clóvis Baleia.

A torcida a favor da jamanta era grande, mas alguns que haviam perdido os seus papagaios me davam força para vencer o grande “carcará” que queria nos engolir.

Restavam apenas dois guerreiros no ar, o meu e o do Agenor de Leonor, meu colega de todas as brincadeiras. O Clóvis só entrava por baixo, levantava o papagaio adversário e o cortava em segundos. Assim o fez com o do Agenor e só se ouviu a garotada gritar! – “Lá vaaaaaaiiii!” – era o grito de vitória sempre que se cortava um papagaio.

Fiquei só no campo de batalha, a minha vez estava chegando. Dei linha para sair do raio de ação da jamanta. O velho Clóvis posicionou-se para a minha direita. Ele, no Largo da Madre Deus, onde jogávamos bola, e eu na barreira da Rua Quatro, onde ficava minha casa.

A jamanta guinava numa constante, quase parada, sinal que o Clóvis estava fumando o seu cigarro Astória ponta de cortiça, que ele gostava. Aproveitei para fazer uns floreios, dei vários sacalões, dei uma enterrada rumo ao solo, dei uma descarga de linha e o papagaio atendeu e voltou a subir incólume. Não demorou muito e já estávamos no combate. Fugi duas vezes, mas na terceira tentativa ele, que só entrava por baixo, mudou a tática e veio por cima, cobriu, desceu e o “saco” de sua linha fez um ângulo na minha. Tentei dar uma descarga de linha, foi tarde, senti a linha morrer em minha mão ao mesmo tempo em que os moleques gritavam o “lá vai” estridente. O que eu queria era ver o meu pequeno pássaro navegar solto no espaço em direção ao Rio Bacanga. Ele cortou mas não matou.

Nesse momento os moleques passaram correndo com suas enormes varas de bambu, na esperança de alcançar, no ar, o papagaio “esticado”, cumprindo a velha máxima de que “papagaio no ar não tem dono”. Mas o meu tinha, foi pousar no rio solenemente e foi levado pela corrente, em direção à Baía de São Marcos.

O sol já se escondia por trás da casa de Dona Maroca, esposa do Sargento Cordolino, um velho músico do Exército que era amigo do meu saudoso pai, com quem conversava sobre caçadas e pescarias.

A tarde lentamente se encaminhava para a noite. Enrolei no carretel a linha que sobrara enquanto a jamanta, invicta em sua tarde de constante guerra, iniciava a sua descida.

Os meninos do meu tempo já são poucos. O velho Clóvis Baleia e o Zezé Caveira são saudades e devem estar conversando lá em cima enquanto olham para baixo, as lanceadas dos meninos de hoje, que alegram o festivo bairro da Madre Deus da minha infância e juventude.

Às vezes me pego olhando para o límpido céu de Brasília, e o menino que ainda mora em mim, sente vontade de gritar com toda força dos pulmões: - “Lá vaaaaiiiii!”

Dezembro está terminando, os meninos estão em férias. O céu continua convidativo, o vento norte traz o cheiro do mar. Vamos falar a esses meninos de hoje para que deixem de lado os computadores, olhem para o céu e vejam que... é tempo de papagaios.

Innocêncio Viégas* é maranhense, da Madre D'eus. É membro da Academia de Letras de Brasília e da Academia Maçônica de Letras do Brasil. É fundador da Confraria dos Amigos da Boa Mesa. É marido de Isabel, minha mãe. E é meu pai. E-mail: Inocencio.viegas@gmail.com

 
 
 
Comentário meu: Meu pai sempre foi louco por papagaios (pipas). Um dia destes, Marcelo Domingues, marido da Isabel, minha irmã, o flagrou empinando uma pipa no quintal de casa. Foi um lance rápido. Mas suficiente para ficar eternizado no youtube.
 
O filme dá veracidade às suas aventuras de menino. Um velho menino novo, que viu a vida passar, sem perder o amor pelos papagaios.
 

3 comentários:

  1. Pois é, nosso pai mantém vivas as memórias da sua infância e sempre que pode, nos surpreende com cenas como essas. Parecia um menino lanceando a pipa. Neste dia, o que o deixou mais feliz foi ter conseguido desenroscá-la do telhado do vizinho. Coisa que os meninos não conseguiram fazer. Experiência faz toda diferença. Bjos. Isa.

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  2. Eita... esse Tio vale ouro!!!! Me deu uma espécie de alegria e emoção vendo ele fazer isso. Sensação boa que há muito tempo não sentia...Um grande abraço a essa família muito querida...

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  3. Olá, muito prazer, meu nome eh Joaquim. Tem alguma obra em que a gente pode contemplar um pouco da histórias das pipas de São Luis? Eu gostaria conhecer um pouco mais a fundo esses personagens acima citados, dos exímios empinadores e confeccionadores de pipa nossa cidade. Obrigado

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