terça-feira, 23 de agosto de 2011

Meu avô centenário

Caso estivesse vivo, Opílio Viégas, meu avô paterno, estaria completando cem anos hoje. Tenho uma imensa empatia com ele. Talvez seja sina de neto mais velho. Talvez seja coisa dos astros. Talvez não seja nada além de admiração. Pura e simples.

Meu avô era um aventureiro nato. Desprendido das coisas materiais. Ganhava e perdia coisas com a tranqüilidade de quem atravessa a rua. Tinha alguns costumes imutáveis: Almoçava às onze da manhã, em ponto. Não saía de casa sem saber com o quê os netos haviam sonhado na noite anterior (era a lógica onírica para o jogo do bicho). Jogava no bicho todo santo dia. E ganhava sempre um dinheirinho. Carregava sempre um revólver na cintura.

Era um galego “estiloso”. Durante muitos anos, carregou consigo uma foto 3X4, tirada aos dezoito, para a carteira do INPS. Mesmo quando já tinha muito mais idade do que isso. Quando a carteira precisava ser trocada, exigia que a foto fosse mantida. E ai de quem disse que não – a confusão era certa.

Fiz muitas viagens com ele. Eu era sua companhia mais constante nas viagens – ai, sim – por ser o neto mais velho. Entre os anos 70 e 80, fiz pelo menos dez viagens junto com seu Opílio. As viagens eram meu o marcador do tempo. A cada ano o via mais envelhecido, enfrentando novos desafios.

Numa das últimas vezes em que viajamos juntos, ele confundiu-se com o ônibus. Entrou em um errado. Por serem de uma mesma empresa, pintados com as mesmas cores, eles eram muito parecidos, diferiam apenas no letreiro indicador do destino e no número.

Quando consegui encontrá-lo, passava uma descompostura no sujeito que “insistia em não sair da poltrona onde deveria estar sentado o meu neto”. Quando eu disse que ele estava apenas parcialmente certo, que aquela era a nossa poltrona, mas em outro ônibus, ele não se fez de rogado – “Não importa, se fosse o ônibus certo, ele teria que sair, sim, senhor”.

Um dia, durante as férias em São Luis, eu me atrasei para voltar pra casa. Eram umas duas da manhã quando voltei. Ele me esperava na janela da casa do tio Zé, onde estávamos hospedados. Perguntou o por quê do atraso. Eu disse que a festa estava boa. Ele me olhou nem brabo, nem feliz. E murmurou consigo “– Este menino... Já deve estar conhecendo os segredos das mulheres”. Ele tinha certeza disso. Eu apenas começava a descobrir que as mulheres guardam muitos segredos – ou, não guardam nenhum.

Foi “Seu” Opílio quem um dia decidiu me ensinar a manusear uma arma. – Meu filho, disse ele me olhando calmamente – teu pai já te ensinou a pegar num revólver? A atirar? - Não, vô. - Mas ele é do quartel e você já é um homem feito (eu devia ter uns 16). Pois é, mas não ensinou. – Então eu vou fazer isso agora. Fomos para o quarto dele, diante da janela do quintal.

Tirou a arma da cintura, mostrou-me cada peça: as balas, o tambor, o gatilho, a trava. Me fez montar e desmontar tudo duas vezes. Depois, pegou o revólver, mirou uma lata velha, no meio do mato, a uns dez metros e atirou duas vezes. Acertou as duas. Entregou-me a arma e disse: Agora é tua vez.

Segurei, aprumei, prendi a respiração, mirei, apertei o gatilho e – claro – errei três tiros. Pronto, me disse. Agora, nunca mais alguém vai poder dizer que meu neto nunca pegou num revólver.

Por alguma razão que transcende a matéria física, acho o meu filho Gabriel parecido com ele. No humor, na rapidez de raciocínio, nas tiradas surpreendentes. Talvez a genética tenha explicação. Talvez os dois curtissem se conhecer. Talvez. A única certeza que tenho é que bateu uma saudade besta. Do meu avô centenário. Um beijo, “seu” Opílio. Onde quer que o senhor esteja.

Um comentário:

  1. Textos sempre inspiradores, mestre Maranhão. Bateu uma saudade "besta" também dos tempos em que eu ia levar marmita pro meu Vô Jayme nas lavouras de café lá de Luisburgo, em Minas, e aproveitava pra almoçar no meio da "companheirada". Fraterno abraço.

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