quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Uma mulher e seu cão

Naquele dia, as nuvens carregadas não traduziam a gravidade da chuva que ainda iria acontecer. Mas havia um vento incomum. Da mesma forma como incomum era o alvoroço dos pássaros, mudando freneticamente de uma árvore pra outra. Prenúncio do quê? Sei lá, pensava ela, enquanto olhava rua abaixo, pra ver se avistava o irmão no prédio ali em frente.

A casa em que morava Dona Ilair, tinha poucos cômodos. Apesar disso, ela a considerava sua fortaleza. Sem reboco nas paredes, era fruto de um longo período de trabalho. Quase uma vida inteira. O seu canto, depois da separação. Móveis simples, fogão de quatro bocas, geladeira duplex, mesa, cadeira e sofá. Tudo comprado em lojas populares, mas tudo muito limpo e arrumado.

De especial mesmo, só a companhia do viralata Beethoven. Tradução irretocável de fidelidade canina, ele não se recolhia antes de sua dona, nunca. E tinha direito a um tapete especial, ao lado da cama dela. Não era um cão desses de madame, mas tinha lá suas regalias. Os dois se completavam. Dependiam um do outro. Como a orquestra depende do maestro e este da partitura.

De repente, o céu fechado desabou. O que os homens do tempo chamam de “cabeça d’água” caiu sobre aquela região com a força de um tsunami. Água morro abaixo, em um volume nunca antes visto, levando tudo.

Ilair olhou em volta e sentiu medo. A água levando árvores, pedras, carros, destruindo casas. A fortaleza dela ameaçada. Pensou no que tinha de maior valor. A vida, concluiu. E a companhia do Beethoven. Não teve dúvidas, elegeu a lage como o local mais seguro para ela e seu cão. Subiu, a tempo de ver parte da sua fortaleza ruir.

O que se deu a seguir era o prenúncio do fim. A casa desabando, como o mundo ao redor. Ela abraçada ao Beethoven. Vizinhos desesperados lhe lançam uma corda. Ela agarra. Passa a corda em volta do corpo, dá um nó. Abraça o Beethoven e salta. Um salto desesperado de vida ou morte.

A escolha seguinte seria pior ainda. A força que lhe restava não garantiria a vida dos dois. Ilair e Beethoven se olham uma última vez. Ela agarrada a ele. A correnteza engole os dois. Por um instante nenhum deles estava a salvo. Ela ressurge e ele se vai, levado pela força d’água.

Ilair se agarra à corda como quem se agarra à vida. A força dos vizinhos e a vontade de continuar viva vencem a sinfonia trágica da natureza. Ela é salva. Entretanto, a vida nunca mais será a mesma. Naquele dia, naquela chuva, Beethoven decidiu recolher-se antes. Para sempre.

Ficção, de Maranhão Viegas, para história real, que pode ser vista no link aí abaixo.

http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/chuvas-no-rj/noticia/2011/01/pensei-que-ia-morrer-diz-mulher-salva-por-vizinhos-com-uma-corda.html

Um comentário:

  1. Triste demais isso. Mas você conseguiu me permitir ver a coisa de uma outra forma.

    Dona Ilair tentou salvar seu cão, mas poderia ter morrido. E quem sabe o cãozinho percebeu que seria melhor que ela o soltasse. Quem sabe no final Beethoven possa ter sido tão herói quanto dona Ilair, ou seus vizinhos.

    Parabéns pelo blog

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