sábado, 16 de julho de 2011

Dobrada à moda do Porto

(Poesia) *Álvaro de Campos e (Texto) *Mariza Poltronieri

Um dia, num restaurante,
fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor
como dobrada fria.
Disse delicadamente
ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada
(e era à moda do Porto)
nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão,
nem num restaurante.
Não comí, não pedi outra coisa,
paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância
de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos
era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor,
porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.


Tia Anita é uma mulher bonita aos seus oitenta e poucos anos. Pele invejável para qualquer mocinha, sem nenhuma plástica ou maquiagem. Ela é irmã de minha mãe Olívia, também uma mocinha de oitenta e um. A casa original dessas garotas é a casa das nove mulheres, todas elas longevas e faceiras. Adoro saber que o sangue delas corre em minhas veias. Tenho grandes chances de passar dos cem anos, com carinha de oitenta, serelepe pimpona.

E o que tem o meu centenário a ver com Álvaro de Campos? A Dobrada à Moda do Porto, nossa dobradinha com feijão branco. Tia Anita fazia como ninguém, mas a história é uma delícia. Todos os anos, até seu Luís mudar para o mundo dos sonhos, passávamos as férias no litoral gaúcho, em uma praia chamada Arroio Teixeira.

Durante muito tempo, sem conhecer outro litoral, achei que uma praia era feita de água gelada, ondas de afogar e muito vento, muito mesmo, com areia fininha queimando minhas canelas absurdamente brancas. Normalmente na volta, passávamos por Curitiba para visitar tia Anita e comer sua deliciosa dobradinha. Ela e meu tio Fernando eram donos de uma churrascaria e a tal dobradinha era um dos pratos mais requisitados. Também serviam uma deliciosa perdiz no espeto, forrada de queijo parmesão. De comer e aplaudir, agradecendo a Deus por tamanha felicidade.

Eu tinha nove ou dez anos e não via a hora de chegar e devorar aquelas tirinhas brancas e seu tempero maravilhoso. Comia e imaginava que devia ser um tipo de macarrão. Ingenuamente, como quem já sabe a resposta mas não sabia, perguntei à minha mãe o que era dobradinha. “É bucho de boi!”, respondeu com todas as outras explicações, “o estômago do boi”. Ai, olhei para o prato fumegando, creio que já era o segundo e parei no meio da garfada. Dobradinha nunca mais.

Passou muito tempo até fazer as pazes com a Dobrada à Moda do Porto, um preconceito infantil. Hoje, como culinarista, sou um tanto quanto chinesa, tudo o que cresce, anda, nada ou voa é de comer, até que se prove o contrário.

E a poesia ? Concordo plenamente com Fernando Pessoa e seu heterônimo Álvaro de Campos. O amor, assim como a dobradinha tem que ser muito quente. Frio, nem um nem outro dá para engolir.

*Álvaro de Campos é um dos heterónimos mais conhecidos do poeta português Fernando Pessoa.
*Mariza Poltronieri é culinarista em Maringá, PR. E tem espaço garantido aqui, para escrever sempre que quiser, sobre alquimia gastronômica. Ou, sobre o que ela desejar.

Um comentário:

  1. Fui ao Google buscar o poema; fui servido com essa também deliciosa estória...

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