quinta-feira, 6 de maio de 2010

Sobre Minas, filhos, estradas e memória

Aconteceu em 2007.
Patão Guedes já não está entre nós.
Perdeu pro câncer, mas ficou na memória, pra sempre. Eu reli agora, porque um amigo - O Rodrigo Pael - começou a falar sobre a angústia de ver o jogo do Corinthians, ontem à noite. Depois de ler, achei que cabia publicar aqui e dividir com vocês.


"Patão" Guedes

Uma amiga jornalista, de Montes Claros, Valéria Esteves, me escreveu dizendo que Patão Guedes está doente, enfrenta uma metástase e voltou para o hospital. Conheço de perto a luta contra o câncer. E sei o quanto é preciso ter forças para enfrentá-lo. Isso tudo me fez lembrar vivamente, dele, de Montes Claros, de Paulinho Ribeiro - sobrinho de Darcy - e do patriarca da família Guedes, Godofredo, a quem só conheço no imaginário e na voz do filho mais famoso, Beto. Escrevo para não esquecer. Escrevo porque enfrento a tristeza de um jeito melhor, preenchendo o vazio do papel.

Cantar
Godofredo Guedes


Godofredo Guedes

Se numa noite eu viesse ao clarão do luar
Cantando e aos compassos de uma canção
Te acordar
Talvez com saudade cantasses também
Relembrando aventuras passadas
Ou um passado feliz com alguém

Cantar quase sempre nos faz recordar
Sem querer
Um beijo, um sorriso, ou uma outra ventura qualquer
Cantando aos acordes do meu violão
É que mando depressa ir-se embora saudade que mora no meu coração



Numa das minhas idas a MOC, Paulinho Ribeiro me chamou pra ir ao refúgio de Ucho Ribeiro, irmão dele. Chovia a cântaros. Paulinho é dado a isso. Inventar coisas. Quando a gente menos espera, ele inventa. E a invenção é tão instigante que é difícil resistir. Lá fomos nós. Chuva forte e fé na estrada.

No caminho, Paulinho me pergunta se conheço Diamantina. De passagem, respondo. Passei por lá no início da década de oitenta. Mas foi uma passagem curta, eu ia de volta pra casa, São Luis do Maranhão, depois de passar dez anos fora. Então tu não conhece é nada, diz Paulinho. E toca pra Diamantina.

Acende um palheiro que viagem assim não se faz sem fumaça. Passa boi, passa boiada, passa morro, passa estrada e toca conversa besta, conversa de menino, de gente livre de preconceito, de gente doida pela vida.

Essas coisas de ir pra não sei onde sempre me dão um frio na barriga. Mas eu topo por que minha vida é um pouco assim. Lembro que era um sábado e a idéia era passar em Diamantina, rever alguns lugares, experimentar uma cachaça e seguir para a fazenda de Ucho.

Paulinho falava maravilhas do lugar. Um chalé na beira de um rio. Cercado de verde por todos os lados. A Água lambendo a varanda. Uma quietude de fazer gastura. Paz em estado puro.

Diamantina - MG

Quando chegamos em Diamantina a chuva tinha se transformado em uma garoa insistente. É impossível andar por ali e não lembrar de São Luis. Ruas estreitas, pedra de cantaria, calçadas de um passante só. Sobrados e azulejos com a cara de Portugal. Paramos em um boteco pra comer algo. Meu telefone toca. Era Mara. Conversa com teu filho. Ele não para de chorar. Gelei.

Gabriel Viegas

Gabriel é um menino lindo. E visceralmente apaixonado pelo Grêmio. Naquele dia, o Grêmio fazia um jogo definitivo, histórico. Ou ganhava e voltava para a primeira divisão do campeonato brasileiro ou amargava mais um ano na segunda divisão. O jogo era no estádio dos aflitos em Recife. Faltavam onze minutos pra terminar. A pressão era total.

O Grêmio, imortal 

Um estádio inteiro contra o grêmio. O Náutico já havia perdido um pênalti. O juiz acabara de marcar outro. O Gabriel se desesperou e começou a chorar. Os jogadores do Grêmio foram pra cima do juiz e ele, além de marcar o pênalti, expulsou quatro jogadores do Grêmio. Gabriel se desesperou ainda mais.

Quando ele chegou ao telefone só dizia: pai, o juiz é ladrão, é ladrão, é ladrão. Meu coração ficou mais aliviado, a tragédia poderia ter sido maior. Passei a falar com calma de pai que precisa acalmar filho. Calma, filho. A vida é assim mesmo. Nem sempre o time da gente ganha, mesmo jogando melhor, blá, blá, blá...

No que estou conversando com ele, vejo uma televisão ligada mostrando aquele jogo. Eu, em Diamantina. Gabriel e Mara, em Campo Grande. E o jogo rolando em Recife. O juiz manda cobrar o pênalti. O Gabriel chora. Eu rezo por ele. E por mim. Pra que eu consiga atravessar bem com meu filho a primeira grande frustração da vida dele, a primeira e mais dolorida dor.

O jogador do náutico corre pra bola. Um silêncio sepulcral no telefone. Só ouço os soluços de Gabriel. O chute. A bola. O goleiro defende. Uma explosão de vozes. Nessa altura do campeonato, todo o bar onde eu estava prestava atenção em mim e na minha tentativa de acalmar meu filho. Já havia até torcida pelo grêmio.

Nem deu tempo de comemorar. O goleiro do grêmio jogou a bola pro Anderson, um pretinho abusado, de trancinhas rastafari no cabelo que ocupava a camisa nove, de centro-avante. Anderson correu, passou por um, passou por dois e foi derrubado. Gabriel xingava o juiz. O Grêmio não perdeu tempo, Patrício cobrou a falta.

Os jogadores do náutico ainda não entendiam o que tinha acontecido, como tinham perdido aquela oportunidade de marcar. Anderson corre pela linha de fundo e recebe a bola. A defesa desarmada. Passa por um, deixa outro no chão. Diante do goleiro tem calma suficiente para escolher o canto. Chuta. Um chute definitivo, certeiro, gol do grêmio. Meu coração quase salta pela boca. Só de ouvir a alegria do meu filho.

O bar em Diamantina, em festa. E o locutor gritava: Incrível, inacreditável, o grêmio faz um milagre no estádio e vence a batalha dos aflitos. O grêmio foi campeão. E Gabriel foi pra rua, com Mara, por a emoção pra fora. Agradeci a Deus pelo milagre de estar ali, de estar por perto, mesmo à distância. Por estar com ele.
Paulinho dividiu tudo comigo. Repartimos uma cerveja e algumas lágrimas de alegria pela vitória de Gabriel, pela chuva, por Diamantina, pela viagem, pela companhia e seguimos para a fazenda de Ucho.

Já era noite quando entramos em uma estrada de barro. Temi diante da possibilidade de ficarmos atolados. Mas o meu temor era besteira diante da vontade do Paulinho de vencer a estrada. Ele dirigia como quem conhecesse aquele caminho desde pequeno. A estrada, o barro, o medo, a noite, tudo ia passando na mesma velocidade. Chegamos com chuva forte na casa do Ucho.

A varanda da casa de Ucho

Tudo ali, do jeito que Paulinho havia descrito. Mas havia mais. Havia umas três ou quatro pessoas fazendo comida, bebendo vinho, cantando. Entre eles, um camarada muito magro, de oclinhos redondo, à beira de um teclado, pra quem fui apresentado: Patão, irmão do Beto. Não demorou muito, estávamos cantando as canções de Godofredo Guedes, de Beto Guedes, de Lô Borges e Bituca (que é como a turma chama Milton Nascimento na intimidade) , um clube da esquina improvisado, feito ali, na beira do rio, abafando o barulho da chuva.

De manhã, quando acordei, pude ver melhor a casa de Ucho. Vi que Jacy, mãe deles, já havia passado por aquele lugar e tinha deixado marcas nas paredes. Uma imagem de Santo Antônio, frases de Manoel de Barros escritas entre as janelas. Uma composição perfeita.

Santo Antônio de Jacy

Manoel de Barros no alto da janela

Agora, quando Valéria me fala da volta de Patão ao hospital, é impossível não pensar nele e naquele dia. Na viagem de volta da casa de Ucho, em que ficamos juntos e dividimos lembranças dos tempos de rua, ele em MOC e eu em São Luis. Sei que vencer o câncer não é pra qualquer um. É pra poucos e pra especiais. Como Mara, como Flora, como Patão.

Enquanto escrevo, duas músicas me ocupam a memória. A que Beto fez para o filho dele, que tem o mesmo nome do meu, Gabriel. E a que está transcrita lá em cima, de Godofredo Guedes, "Cantar". Vale pra lembrar o Patão. Vale pra espantar a saudade. Vale pra celebrar a vida.

2 comentários:

  1. Não conheci Patão e nem conheço Diamantina, mas Gabriel, filho de Beto, foiamigo meu e frequentou muito a minha casa quando tocava com meu irmão. Visitei também a casa deles no Cipó e espero que a perda lhes seja leve como nenhuma perda pode ser.

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  2. olá Maranhão...

    Cada texto que leio neste espaço de convívio, com modos e maneiras do Brasil que pertenço, regozijo-me de alegria. Já lá vão nove anos de Portugal e cada dia que passa sinto-me mais parte desta terra, entretanto nem me passa pela cabeça esquecer os jeitos do lugar que me pariu...
    Por mais que isso nos doa, o Brasil é um Portugal miscigenado. E digo que dói porque ser o colonizado é complicado. Eu tenho uma visão muito diferente daqueles que vem cá como turistas. Vivo cá completamente enraizada. Marido e filhos portugueses. Brasileiros praticamente não existem em meu círculo de amizade.
    Mas canto de Portugal que ando, reconheço pedaços do meu pais. A baixa da cidade de Lisboa é como andar na Cinelândia. Nos caminhos do Porto, Douro e Minho vemos Minas, São Paulo, Pernambuco, Maranhão. E quando entramos nas cozinhas de Minas com seus sabores e cheiros, comemos um pedacinho daquilo que se come cá. Os doces em calda, os pudins ricos em leite e ovos, os leitões assados e as carnes guisadas.
    Passear em Diamantina é o mesmo que conhecer o Porto e a arquitectura do norte de Portugal. A forma das janelas e portas. As eiras e beiras nas casas mais ricas.
    Sou feliz aqui? Sim sou muito feliz, mas tenho saudades dos amigos que ai deixei…tenho muitas saudades!!!
    Beijinhos ao Gabriel, a Mariana, a Mara e um especial para você!!!

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