domingo, 2 de maio de 2010

Ao mestre, com carinho


No dia em que Glauber Rocha morreu eu estava no Rio de Janeiro, participando de um encontro nacional de cinema. Era o início da década de 80. Dois convidados especiais também estavam lá e se uniam a mim por uma questão de identidade geográfica e poética: José Loureiro e Ferreira Gullar.

O primeiro deles é escritor e roteirista de cinema. O segundo é o meu poeta maior, se quiser saber porque, faça uma visita ao site dele.

Ambos, como eu, maranhenses de nascimento. E como eu, guardam também amor e dor por esta terra de contrastes – a ilha de São Luis.

Hoje, domingo, nesse início de maio, revendo arquivos que vou guardando ao longo da vida, encontrei algo de Gullar que me toca muito. Uma crônica, publicada originalmente na Folha de São Paulo, em junho de 2006, da mesma forma que hoje, às vésperas de uma copa do mundo.

O texto de Gullar é um modelo pra mim. Como a sua poesia e o seu raciocínio. Por isso, faço questão de republicar aqui o que ele escreveu sobre ídolos, identidade, futebol e paixão. A paixão é um pouco por minha conta. Porque, à medida em que descreve suas idas aos campos de futebol com o pai dele, eu também me identifico com a minha infância, em São Luis.

Refaço o caminho das poucas vezes em que fui ao estádio Nhozinho Santos, acompanhado por meu pai, assistir ao clássico maranhense “Maremoto”, que reunia ,de um lado, o Maranhão atlético clube e, de outro, o Moto Clube de São Luis (meu time). O texto de Gullar é primoroso. E me inspira as mais remotas e deliciosas lembranças da infância. Boa leitura.



CRAQUES DA MINHA VIDA
FERREIRA GULLAR



Como o assunto no Brasil de hoje é o futebol, aproveito para dizer que sou filho de um antigo centroavante do Luso Brasileiro Futebol Clube, que foi tantas vezes campeão maranhense.

Ele se chamava Newton Ferreira, e foi na qualidade de craque da seleção maranhense que, em 1929, conheceu o Rio de Janeiro, um ano antes de nascer o seu filho José, ou seja, eu, também conhecido como Periquito.

Disputava-se o Campeonato Brasileiro, e a seleção maranhense, campeã do Norte e Nordeste, veio ao Rio enfrentar a seleção carioca. Foi recebida, no palácio do Catete, pelo presidente Washington Luís e, no dia seguinte, adentrou o gramado disposta a vencer. Mas perdeu: perdeu para os cariocas de 9 a 0 e saiu de campo debaixo de vaias e sob uma chuva de chupas-de-laranja.

Isso foi meu pai mesmo que me contou, muitos anos depois, quando o trouxe ao Rio para tratar da saúde. Talvez tenha sido dele que herdei esta disposição para rir de mim mesmo. Ele ria da derrota e eu ria com ele.

Mas minha relação com o futebol não se limita a isso, já que, sem o mesmo talento que ele, joguei no infantil do Ferroviário Futebol Clube, sem contar as peladas no Campo do Ourique, em frente ao Mercado Novo. Bem, já então Newton Ferreira abandonara o futebol e se tornara um pequeno comerciante, mas ainda me levava para assistir, aos domingos, às partidas do Luso.

Minha carreira futebolística terminou quando sofri uma violenta rasteira e caí de bunda no chão. Temi ter quebrado o espinhaço e vi que seria melhor dedicar-me a esporte menos brabo; a poesia, por exemplo.

Troquei a rua pelo quarto, onde agora passava os dias lendo, enquanto meus companheiros de pelada seguiram seu rumo. Dois deles se tornaram craques de futebol, amados das respectivas torcidas: Esmagado, que fez sua carreira lá mesmo em São Luís do Maranhão, e Canhoteiro, que se tornou ídolo da torcida do São Paulo.

Quando, aos 21 anos, me mudei para o Rio de Janeiro, já os tinha perdido de vista e quase me esquecera do futebol -eu, que era vascaíno doente, que pusera o nome do Vasco em meu time de botão.

Muito anos depois, numa das minhas idas a São Luís, reencontrei Esmagado, já fora do futebol, mas admirado pelos fãs. Passeamos juntos pelas ruas da Madre-Deus, num sábado à noite, quando pude ver como o povão o admirava e se aproximava de nós para abraçá-lo e conversar.

Ídolo são-paulino


De Canhoteiro, tive notícias através dos jornais: era chamado de "o Garrincha do Morumbi", tão sensacionais eram os dribles que dava nos adversários, com o mesmo espírito moleque das peladas de infância. Jogou na seleção brasileira e conquistou legiões de fãs, entre os quais o menino Chico, filho de Sérgio Buarque de Holanda.

Certo domingo, pela televisão, o vi jogar. Mal acreditei: ali estava, com as mesmas gingas, o Canhoteiro das partidas em frente ao Mercado Novo. Nesse mercado, o pai dele, seu Cecílio, tinha uma banca onde vendia mingau de milho e tapioca. Era lá que, todas as manhãs, bem cedo, quebrava o jejum antes de seguir para o colégio.

Ele não via com bons olhos aquela obsessão do filho pelo futebol. Queria que o filho estudasse, em vez de jogar bola. "O que vai ser desse menino quando crescer? Vai terminar vendendo mingau no mercado que nem eu?"

Newton Ferreira procurava tranquilizá-lo: "Nada disso, seu Cecílio, o menino vai ser um craque da bola. Ouça o que estou lhe dizendo". Mas é que, naquela época, ser um craque da bola no Maranhão, em matéria de grana, não queria dizer grande coisa. "Você foi um craque e acabou quitandeiro. Quero que meu filho seja doutor, seu Ferreira, isso o que eu quero", dizia Cecílio.

Canhoteiro já era gênio aos dez anos de idade. Prendia a ponta da camisa na mão, enfiava dois dedos na boca (ele ainda chupava dedo) e saía driblando todo mundo com extraordinária habilidade. Tive, assim, a glória de trocar passes com ele, muito antes que a fama o coroasse.

Um dia confidenciei a um cronista esportivo -se não me engano, ao Armando Nogueira- que tinha sido colega de infância de Canhoteiro, e ele logo pensou em promover um encontro de nós dois, na primeira oportunidade que o São Paulo viesse jogar no Rio. O encontro não houve, mas, quando falou de mim a Canhoteiro, este exclamou:
-Não me diga, o Periquito virou poeta?!


Pra fechar, outra poesia em forma de música, de outro maranhense, Zeca Baleiro. Justa homenagem ao ídolo de Gullar, "Canhoteiro".

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