sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Baarìa de Tornatore e de sempre


Por Eliane Oliveira di Quarto*
Bagheria, Italia.
Janelas se fecham e persianas descem sem deixar frestas. São só 07.30 da manhã! Cai o silêncio nas ruas. É Bagheria, Sicília, em dia de Scirocco. Do árabe, shurhùq, vento do meio-dia. Sopra do sudeste, diz a rosa dos ventos. Chega do continente africano, afirmam os estudiosos. Impetuoso! Temido no verão, tornou-se um dos símbolos climáticos da Sicília, da Sardegna e da Calábria.


Portas e janelas fechadas, tempo de Scirocco.
Há uma década por estas terras, este é o meu primeiro scirocco, embora todos os anos passe boa parte do verão na maior ilha italiana. Vejo Giusepina fechar toda a casa. É o primeiro Scirocco do Lorenzo, também. Levados pela curiosidade, juntos, abrimos a porta que dá para a sacada. Espantada a nonna Giusy não perde tempo! “Chiudi, chiudi, per favore. Oggi é giorno di scirocco. Non possiamo aprire niente.” A impressão era de entrar, literalmente, dentro de um forno; de estar em ebulição. Por vezes o vento sopra trazendo areia do deserto africano e cobrindo tudo de um pó quase vermelho. Não desta vez.

Levamos o dia adiante fechados em casa para evitar que o calor entre. O tempo se dilata. Preenchemos as horas à mesa, mais do que o de costume! Conversas, longas conversas. Quando a luz elétrica ainda não iluminva todas as casas, pra procurar um pouco de fresco nos dias de scirocco, as mulheres molhavam o chão da sala. Alagavam, mesmo, e toda a família se deitava ali, pra suportar o calor.


Nonna Giusy vai abrindo o cordel. Há pouco mais de um século os costumes eram o que hoje poderíamos definir como inacreditáveis. Diante de um luto em família os homens não faziam a barba por um bom tempo, as mulheres não cortavam os cabelos e roupa preta era obrigatória. A mesa não ocupava mais o centro da sala ou da cozinha. Era colocada em um canto, encostada na parede, nua, sem toalha, pra despir o ar de festa que as refeições têm para os italianos.

Observo que a “zia Piera” ainda carrega o luto pela morte do marido, em janeiro deste ano. Encontrei-a no casamento do filho mais novo, toda vestida de preto, da cabeça aos pés. Diante de um calor infernal, até as meias finas eram pretas. Quando me viu, foi logo justificando o colar de pérolas brancas no pescoço: “Ane, figlia mia! Mi hanno obbligato a metterlo. Io non lo volevo”. Com um sorriso eu só respondi: “stai benissimo cosi, zia!”

Hoje, a mesa onde se vela o corpo de um familiar é a mesa onde todo mundo come junto depois do funeral mas muitos dos costumes na Sicília das influências árabes, tardam a desaparecer. É quase vergonha o homem ajudar a mulher nas tarefas de casa. Eu vi famílias tradicionalistas presentearem louças de prata a uma menina de seis anos no dia da sua crisma."É para o enxoval."

Casamento. Há 50 anos, os noivos, depois de todas as comemorações, ainda fechavam-se em casa por quase uma semana e só recebiam a visita dos pais. A primeira a entrar deveria ser a sogra da mulher porque era preciso checar o lençol com vestígios de perda da virgindade. Se assim não fosse a nora seria devolvida à família. Giuseppina conta com alegria que não teve que sofrer este controle e nem sabe bem o porquê. Mas, por outro lado, teve que demonstrar o luto pela morte da sogra. Por 2 anos vestiu-se, sempre e inteira, de preto. Não se trata do século passado mas de 4 décadas passadas.


O papo vai se tornando mais contemporâneo e falamos de uma Bagheria que eu conheço. A de hoje que custa a caminhar; nas pequenas e nas grandes coisas. É o atraso dentro de uma Sicília já atrasada. É a negação total das regras. Os sinaleiros, por exemplo, foram destruídos, e não uma vez só. “Ai bagheresi non piacciono i semafori, Ane”. Uma vez, amigos scilianos me contaram de um alemão que dirigia em Palermo. “Mamma mia.... pensavamo di morire in un incidente perché il tedesco frenava quando era rosso e passava quando il semaforo era verde. Era una cosa impressionante!” E eles contavam com uma naturalidade e uma seriedade ainda mais impressionantes.


Embora, na história siciliana, o cristianismo tenha procurado sempre resistir, no arco de 2 séculos a região experimentou um processo de cultura árabe e islâmica muito profundo. A expansão mulçumana deixou fortes marcas. Nos hábitos, na culinária e na ciência. Em algumas cidades mais do que em outras. Família ali é sagrada. Aconteça o que acontecer e não importa o porquê, uma família não se desfaz. Já me aconteceu de assistir à discussões terríveis que me levaram a pensar: eles nunca mais vão se falar. Meia hora depois, estavam lá, todos à mesa, rindo, como se nada fosse. Esta é um pouco a Itália do imaginário estrangeiro. A Itália do Sul. A Itália que imigrou depois da guerra em busca de uma vida melhor.


E Bagheria, cidade de Giuseppe Tornatore, é assim. É o fim. É uma terra de limites. É um mar sem praia. É um ármário de vestes velhas. É a linha viva do passado. É lugar de máfia. É o futuro que não chega.

Quem sabe que histórias soprarão com próximo scirocco, no próximo verão!

(ai embaixo, os cinco últimos minutos do filme Baaria, de Giuseppe Tornatore. Se puder, depois, assista o filme inteiro. Vale a pena.) 


*Eliane Oliveira di Quarto
é brasileira, jornalista,
é mãe de Lorenzo e
Sophia e vive há mais
de dez anos em Milão,
na Itália.

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