sexta-feira, 8 de julho de 2011

"Seu" Luís, Maria e a gentileza.

por Mariza Poltronieri*

Guernica - Pablo Picasso
Foram anos difíceis entre 1939 e 1945. A Europa, mesmo distante, abrigava uma guerra que parecia interminável e soprava seu vento assustador nos continentes distantes.Bem longe de lá, numa cidade chamada Guaporé, na serra gaúcha, um menino brincava seus dias comuns com os brinquedos que tinha: pião, pipa, bodoque.

Guaporé foi colonizada sobretudo por imigrantes italianos, mas também alguns alemães, poloneses, russos e austríacos. O menino era neto de italianos. Luís era o seu nome.Luís vinha de uma família numerosa e simples. Enquanto o pai trabalhava no curtume, a mãe cuidava dos cinco filhos e da casa. Em um lugar onde sobra gente e falta condições, Luís ia para a escola para estudar e para comer.

A Itália, na segunda guerra, era um dos países pertencentes ao eixo Alemanha, Itália e Japão. O Brasil, ditado por Getúlio Vargas, simpatizava com o eixo porém apoiou os aliados. O preconceito daquela guerra começou a espirrar em nosso povo miscigenado.

Estranhamente, algumas autoridades começaram a pontuar os brasileiros. Colônias e vilas inteiras, reduto dos imigrantes e seus descendentes ítalo-germânicos começaram a ser perseguidos e torturados. Não se podia falar qualquer estrangeirismo. Os idosos, que não aprenderam o português, ficavam trancados e em silêncio, para não serem alvos de violência. A intolerância também chegou às escolas.

Luís tinha muitos amigos na escola. Todos eles eram brasileiros. Porém, decidiram que somente os negros ou afro-descendentes poderiam ser considerados como tal e receber a merenda. Luís parou de comer e de estudar. O menino aprendeu algo muito ruim e deixou de ser amigo dos negros.

Luís cresceu e virou "seu" Luís, meu pai. Maria era uma mulher muito forte e corajosa. Era negra e analfabeta. Ela foi minha babá quando eu era criança, depois foi cuidar de sua vida, fazer e desfazer casamento, ter filhos. 

Luiz, os filhos (Mariza ao colo)
 os pais dele, em pé.
O tempo passou para todos e nos juntou em uma mesma casa. Luís, Maria, eu e o resto da família, mãe e cinco irmãos. Neste tempo, as coisas aconteciam conforme a responsabilidade de cada um. Os afazeres de Maria se restringiam ao trabalho doméstico, limpar e cozinhar. Também tinha um jeito muito especial com as plantas. Não havia sequer um matinho que não brotasse em suas mãos,flores singelas ou orquídeas se rendiam à sua autoridade.

Maria era brava porém era gentil. Seu Luís, o menino crescido, ia e vinha de Mato Grosso do Sul, botas limpas, botas sujas e dá-lhe Maria. Eu terminei a faculdade e estava em dúvida do que seguir. Não havia mais Getulio Vargas mas tinha Sarney e uma guerra inflacionária. Nada de emprego para engenheiros, fui abrir uma confeitaria. Tudo estava em obras, inclusive a minha vida.

Maria pediu as contas. Queria sair de nossa casa e se aposentar, já estava cansada da rotina de trabalho duro. Seu Luís adoeceu então ela decidiu ficar, paparico no menino que agora precisava mesmo dela. Fazia suas comidas preferidas, trocava seu lençol todos os dias, sempre cheirosos e fofinhos, cuidava de seu cão perdigueiro que já não caçava mais. Se as pernas do seu Luís não se firmavam, somente ela era convidada a amparar-lhe. Ele confiava neste amparo.

"Seu" Luís não durou muito. Mudou-se para o lugar onde nos encontramos, no sonho. Maria foi embora, pela segunda vez.

Vinícius, Mariza e Fernanda
Agora era minha vez de cuidar de minha vida, fazer e desfazer casamento e ter filhos. Maria voltou para me ajudar, por minha casa em ordem, ensinar que lugar de cachorro é lá no quintal e que gatos não podem subir na mesa. Fazer bolinho de chuva para mim e mimar meus filhos, cuidar do meu jardim, apenas alguns dias da semana. Ganhei dela uma muda de manjericão, enfiada num vaso qualquer por seus dedos mágicos, que vive até hoje. Já rendeu bons pratos. Maria cansou e foi embora, pela terceira vez.

O tempo passou e Maria adoeceu. Fui a sua casa visitá-la. As orquídeas obedientes estavam em flor, o pé de jabuticabas com os galhos e troncos forrados de pelotas verdinhas. Maria descansava em seu quarto. Levei muitas frutas e coisas gostosas de comer. Ela sabia das coisas e tinha um excelente paladar, para cozinhar e comer. Maria ficou feliz mas sofria, por uns instantes ela se esforçou para ser uma boa anfitriã e agradeceu. Despedi-me com um abraço com gosto de ontem, de muita saudade. Antes de sair, desculpou-se por não me receber na sala e disse que voltasse outra hora para colher as jabuticabas maduras.

Maria foi embora pela última vez.
 
Luiz Poltronieri
Os filhos de Maria, já estão crescidos e trabalhando. Foram eles que me revelaram algo que sequer imaginava. Me disseram que "seu" Luís pagou o uniforme e o material escolar deles durante todo o ensino fundamental.

"Seu" Luís, o menino e meu pai, aprendeu em tempo algo muito bom, com sua amiga Maria, negra e analfabeta: a gentileza e a solidariedade são os melhores remédios para vencer o preconceito.

3 comentários:

  1. Obrigada Maranhão!
    Você é a materialização da gentileza.
    Sempre cuidadoso com o amor e as pessoas que vivem dele.
    Abraços.

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  2. Minha amiga Edna Khoury escreveu em meu email:

    Mariza querida!
    Seu texto é simplesmente M A R A V I L H O S O !!!
    Que Deus continue te iluminendo.
    Beijo gigante!!!
    Edna

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  3. Isadora escreveu em meu email:

    Tia Dinda Mariza

    Como boa Poltronieri terminei o texto aos prantos. Nao sei se fico mais tocada com a historia que vc, com destreza, contou, se é pelo fato de serem os personagens meu avô, que me conheceu e eu nao tive a oportunidade de conhecer, mas que nao tenho duvidas de que foi um homem maravilhoso e a Maria, que cuidou da minha mae, meus tios e meu vô e até de mim, ou por saber que essa fada das palavras, comidas e cheirinhos é minha dinda, aquela que meus pais escolheram para ser minha segunda mae, junto com a minha nem sempre gentil, mas igualmente amada Isa.

    Obrigada por continuar nos proporcionando esses momentos de leitura afetiva.

    Te amo!

    besos

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