domingo, 21 de março de 2010

Eternamente, Flor!


Na casa de Flor tudo é detalhe. Os quadros na parede. As fotografias envelhecidas. O santuário. A janela com a árvore, sacudida lá fora, pelo vento. Aquela árvore foi Zezão quem plantou, quando chegamos a Brasília, faz mais de quarenta anos, explica. Tudo ali remete a Minas, origem da família.

Zezão é o companheiro de vida. Ela, com noventa anos recém completados. Ele, com noventa e nove, já sem visão alguma, mas com a lucidez dos meninos.

Flor acaba de sair de uma temporada na UTI. Quem vê, desconfia. Ela se move ligeira pela casa. Apesar da respiração arfante. Abre a geladeira, oferece água ou suco. Retira a comida congelada. Afasta uma panela do fogão e deixa o fogo aceso por uns instantes. Volta-se para a pia. Depois, lembra do fogo aceso e o apaga.

Senta-se ao meu lado sem nunca tirar das mãos um terço. Seus olhos miudinhos conversam comigo, enquanto aguardo Laura, sua neta jornalista. Flor me conta que teve onze filhos. Hoje já não os tem mais. Alguns se foram antes. Flor, que em verdade chama-se Florides, é leonina. E faz jus ao signo. Não perde a altivez. Ainda que esteja de pijamas.

Inquieta, confere a hora do almoço. Faltam detalhes. Chama Regina, a filha que divide a vida com ela e Zezão. Orienta o que falta esquentar. Um pouco mais de feijão. Aquecer o arroz. E tudo estará pronto. Regina responde sem sair do quarto – Calma. Flor se encosta na parede e segreda, como se pensasse alto: Calma... Essa gente de hoje... Para eles, tudo é calma.

Volta ao sofá e me informa, sem precisar, que eu poderia almoçar com eles. Agradeço. Tem um almoço esperando por Laura em minha casa. Onde? Me pergunta. Em Sobradinho. Regina deu aulas em Sobradinho. Por muito tempo. Hoje, aposentou-se, me conta Flor.
A memória está intocada. Viva. Pertinente. Chama por Regina, novamente. Do nada. Como se tivesse percebido um detalhe que ninguém mais houvesse. – Feche a janela do corredor, Regina. Laura vai sair do banho e não pode tomar esse vento.

Volta-se para a minha companhia. Fala das bisnetas, filhas de Laura. Uma é do Ceará. A outra, do Hezbolah. E ri um riso matreiro, como se tecesse no imaginário a personalidade das meninas. Antes de sairmos ela se afasta da sala. Vai em direção à poltrona, mais perto da janela e de frente para uma televisão. E balbucia consigo, está na hora do meu jornal.

Na saída da casa de Flor, dou-lhe um beijo de despedida. A pele enrugada pelos noventa anos não traduz a intensidade dessa mulher. No caminho, Laura me diz que Flor lhe chamou num canto, na noite em que ela, Laura, chegou a Brasília, para visitá-la. E cofessou-lhe: Você precisa vir logo para cá. Temos muito a conversar. Tenho coisas para lhe falar sobre as quais nunca falamos.

Laura está pensando seriamente em vir de muda para Brasília. Não é à toa que carrega nas costas uma tatuagem que diz – eternamente, Flor.

4 comentários:

  1. Maranhão, como são ricos esses momentos com quem tem a experiência que só os anos trazem, não é? quando tiver tempo, veja http://antesquemeesquecam.blogspot.com/2009/11/o-tempo-de-cada-um.html
    http://antesquemeesquecam.blogspot.com/2008/07/tempo-demais.html
    bjs

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  2. Oi, Leninha! Já tinha lido os seus textos e, de tão rico, seu blog já foi recomendado aqui.

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  3. Ei, Maranhão!
    Você "ver"!
    Lendo o seu texto me arrepiei e me veio a mente a afirmação do Paul Klee de que a arte nos faz ver... Mas aqui, e em todo seu blog você nos mostra a arte de ver! E como você "ver"!!!Minúcias, ternuras de um cotidiano que só quem tem a arte de ver,ver!!
    Enquanto isso, a Flor vai se despetalando...Eternamente!
    Muito lindo! Obrigada!
    Bjs de Flor , Regina e Zezão

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  4. Amigo, querido, há dias ensaio uma resposta ao seu tão delicado texto. Lisongeada com o seu olhar atento e suave, imaginei respostas líricas.
    Quero que saibas que além de tatuada eternamente em mim, Flor plantou também ensinamentos: Terna e Eternamente, tens minha amizade!
    beijos,
    laurita

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