terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
Um dia, depois de outro dia...
Não há dor maior do que a dor de não poder fazer nada.
E não há exercício maior que a capacidade de superar a dor.
Está fazendo 26 anos que eu e a minha turma de faculdade vivemos uma experiência assim. Diante da violência, a perplexidade e a impotência. Eram tempos diferentes. Tempos em que lidar com determinados tipos de acontecimentos significava expor ainda mais as vítimas da violência. Havia despreparo e medo. E a gente, no auge da crença de que tudo era possível, só pensava em tudo de bom. Não imaginava ter que carregar aquela dor imensa, por tanto tempo.
Corria o ano de 84. Duas de nossas amigas do curso de comunicação dividiam o apartamento numa cidade vizinha ao Campus. Tudo era tão perto que, na hora de vir para a faculdade, havia uma alternativa de descer do ônibus, percorrer uma trilha por um pequeno bosque e alcançar as quadras de esporte da universidade gastando apenas cinco minutos de caminhada.
Ninguém imaginava que algo ruim pudesse acontecer com alguém tão perto de nós. Mas, naquele dia, no espaço de cinco minutos, as duas foram perseguidas, atacadas e violadas. Era uma e meia da tarde quando aconteceu. E aquela tarde, e aquele horário, e aquele pavor, marcaram pra sempre a vida delas e a nossa.
Depois da violência, elas foram acolhidas e cuidadas. Primeiro, por nós, no diretório acadêmico. Depois, pela família de uma delas. Elas se recolheram. Optaram pelo silêncio. Preferiram cuidar das feridas físicas e emocionais sem fazer alarde. E sem pedir ajuda da polícia para encontrar e punir os maníacos.
Elas seguiram no curso até o final. Mas ninguém é capaz de dimensionar o esforço que fizeram para vencer o trauma, a vergonha, a dor... O tempo de faculdade acabou. A vida tratou de nos separar a todos. Ontem, encontrei uma delas na internet. E foi emocionante.
Ela me disse da vontade de reencontrar a amiga de quem também se distanciou. Comemorou uma reaproximação e a perspectiva de um dia poderem, juntas, conversar sobre o acontecido. Não por masoquismo. Para entender o que uma e outra fizeram para sobreviver.Para falar da reconstrução de suas vidas. Para servirem de exemplo.
Durante quase uma hora ela teclou com avidez. Eu quase podia ouvir a sua voz saltando da tela. Fez comigo o que imaginei ser um ensaio para a conversa definitiva que ainda vai ter com a outra amiga. Uma vida passada a limpo em poucos minutos.
O bom da história foi ficar sabendo que superou os traumas, que venceu os medos e que comemora a família que tem. Um companheiro para a vida toda (como ela mesma diz) dois filhos lindos e uma paixão incontrolável por gatos.
Pediu-me que falasse dessa história no blog. Tremi nas bases diante de tão complexo desafio. Mas não tive como negar-lhe o pedido. Com a franqueza de quem sabe que não pode fazer muito no passado, pedi-lhe que me perdoasse se em algum momento da vida ela tenha pensado que lhe faltei.
E assumi o compromisso de tentar traduzir essa história de dor em algo maior. Algo capaz de contar o ocorrido preservando-lhes a imagem. Sem pieguice, sem exageros. Ela sorriu, através das teclas. Ela é uma prova viva de que a vida dá voltas. E de que, nem sempre, o medo e a violência – por mais medonhos que sejam – são capazes de nos tirar a esperança.
Vou torcer para que elas se encontrem de fato. E para que possam ler essa página da vida do ponto de vista dos vitoriosos. Não há como pensar de outro jeito. É isso o que elas são. Um dia, após o outro. Vitoriosas.
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Fico pensando numa frase que o sogro de meu irmão sempre repete:"A vida é uma doença que não tem cura". Esta frase não tem nada de triste, ela serve para reafirmar o que temos que fazer todos os dias: renovar a nossa fé e com ela nossa coragem. Gosto muito de uma palavra que resume esse passar dos dias turbulentos sem se deixar levar pelo desalento, chegando ao presente ainda com bom humor e doçura: resiliência.
ResponderExcluirCreio que isso é melhor que ser guerreiro. Diante da dor, do corpo e da alma dilacerados, o resiliente sabe que "sua" vida é o sol. Ele não deixa de brilhar nunca.
A dor de quem tem alguém próximo que tenha passado por uma violência como essa é indescritível. O mundo está muito doente....
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