Há dias estou longe daqui. Mesmo que isso pareça impossível. O Blog está sempre comigo, mas há dias estou longe dele. Não por falta de vontade. Não por desgosto. Não há razão clara, a não ser o cansaço.
Há dias viajo pelo mundo, que se parece mais vasto do que na poesia de Drumond. Fui de Brasília a Montevidéu. Voltei de lá para Brasília e dai, segui ao coração do pantanal. Passei pelas ruas de Campo Grande que tanto me ajudou a ser quem sou. Revi amigos eternos, amigos de sempre e de tudo. Voltei a Brasília e de lá embarquei para Minas Gerais.
Desde ontem, frequento as horas entre montanhas alterosas. Desde ontem, minha paisagem é outra. Rodeada de cheiros e verduras. De cafés e pães de queijo, que transmutam meus dias de reuniões. Amanhã, São Paulo. E depois, Brasília de novo.
Agora há pouco, abri a internet num espaço que tinha para descansar. Caiu em meus olhos um texto de José Castelo, falando sobre Manoel de Barros e publicado no Jornal Valor Econômico. Mesmo cansado, "garrei" na leitura do texto (como eles dizem aqui em Minas) até não haver mais o que ler.
Manoel tem o dom de me emocionar. Desde a primeira vez que o li. Desde o começo deste blog eu declarei o meu amor por ele, pelas palavras dele, pela poesia dele. Basta clicar aqui e você vai comprovar isso, lendo o meu primeiro post.
Pois, hoje, no reencontro com o meu blog, eu abro espaço para a poesia que vence o cansaço. E reproduzo aqui o texto de José Castelo sobre Manoel, que tanto me emocionou.
Por José Castello | Para o Valor, de Curitiba
Retratos não guardam a objetividade, tampouco a nitidez que deles esperamos. Estão sempre um pouco desfocados. Conservam o recorte da perspectiva. Dependem de uma série de fatores externos, do acaso, do imponderável, que estão muito além das circunstâncias técnicas. Trazem manchas de luz, súbitas obscuridades, deformações. Essas ideias me vêm enquanto tento traçar um retrato do poeta Manoel de Barros.
Aos 95 anos, depois de perder, há quatro anos, o filho do meio, João, o poeta de Mato Grosso do Sul agora vigia à cabeceira de seu filho mais velho, Pedro, que sofreu um AVC. Anda triste, esgotado, oprimido pela rudeza do real. Quase não sai mais de casa. Além da mulher, Stella, só se comunica regularmente com a filha, Martha Barros, que vive no Rio, mas está sempre em Campo Grande ao lado do pai. "Não fala da morte", me diz Martha, "nem gosta de falar de doença". À morte nome algum - poema algum - corresponde e o poeta sabe disso. Cala-se: só o silêncio faz algum sentido, ainda que precário, diante dela.
Ainda assim, ultrapassando seu silêncio e por meio de Martha, experimento lhe mandar um pedido de entrevista. Que responda à mão - Martha copiará depois suas respostas em um e-mail. Que responda aos poucos, aos pedaços, devagar. Explico-lhe que meu tema (o tema desta coluna de "Instantâneos") é o presente. O que lhe peço? - eu me dou conta. Que enfrente e fale de seu doloroso agora. Mesmo assim, escrevo minha carta, admito, sem grandes esperanças, mais para lhe fazer um gesto de carinho. Mais para acariciar, ainda que com palavras, um poeta que muito admiro.
Para minha surpresa, poucos dias depois, e novamente por meio da bondosa Martha, recebo esta resposta:
"Campo Grande, fevereiro de 2012
Caro amigo Castello
No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Pois minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver.
Como dizer! Eu vi um lagar com olhar de árvore. Pura inocência que o absurdo faz. Pura inocência para desver o certo. Eu queria era mudar a feição das coisas. Assim como desnaturar pela palavra. Ver as coxas rosadas da Manhã na beira do rio era gosto. A gente andava perdido nas Origens.
As palavras não tinham comportamento. Era sempre um Tratado de Descoisas que eu queria fazer. São alguns dos fragmentos que estou aqui mandando a você como respostas às suas sábias perguntas. Repito que sempre andei pelas origens sem me conhecer. Talvez sirva esta espécie de carta para explicar o divino absurdo e Fernando Pessoa para explicar as raízes da inocência. Assim: eu vi uma frondosa formiga ajoelhada no adro!
Mas não havia nem adro nem origens. Grande abraço e obrigado por tudo.
Seu amigo
Manoel de Barros"
"No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Pois minha imaginação não tem estrada", diz Manoel em carta
Atordoado, mas feliz, releio a carta, sem me dar conta, de imediato, de que, na mesma folha, ela continua em um novo trecho batizado apenas de "1". Talvez seja a tentativa de responder à primeira das perguntas que lhe enviei, em que eu lhe pedia que falasse de seu trabalho poético atual. Eu queria saber apenas o que Manoel tinha a me dizer a respeito das coisas que anda escrevendo. Sei que, apesar da idade avançada, continua a escrever porque li o maravilhoso "Escritos em Verbal de Aves", lançado no fim do ano pela editora LeYa. Livro em que trata da morte de um de seus personagens mais famosos, Bernardo. Sim, as palavras podem enfrentar a morte, agora me dou conta. E Manoel sabe disso.
Assim continuou Manoel:
"1.
Quero repetir uma coisa. É que o absurdo é divino porque o absurdo infantiliza as palavras - como seja: Eu vi um sapo com olhar de garça. Não infantilizei a beleza das garças! Para bem compreender a voz das águas, das árvores, das pedras, precisamos estudar ignoranças - coisa assim: eu vi a bunda do vento e a bunda só tinha o lado de fora. A gente não estudara as coisas por dentro delas. A gente fosse ignorantes! Mais tarde eu quis saber o que o silêncio sabe sobre a solidão das pedras. Ninguém nada sabia. Só um homem abraçou a ignorança.
A gente mais tarde via os caracóis enrolados em suas palavras. Ele se tornara um vate porque suas palavras se enrolavam nas lesmas dos caracóis! As lesmas queriam dormir nas palavras do vate. Agora, dentro da solidão das minhas palavras andam caracóis que fazem confusão comigo. Criaram raízes em minhas palavras e andamos juntos nestas origens.
Agora a gente só queria saber o formato severo dos silêncios. Agora eu vivo por gosto de engolir a linguagem e não porque gosto de compreender. O mundo eu só quero desver.
Sempre fui mais tido como um parvo! Porque eu queria mudar a feição das coisas com palavras. Assim, uma vez eu vi a tarde correndo atrás de um cachorro. A tarde não pegou o cachorro. Mas eu vi de visão. As águas irrompiam de minadouros para mim. Irrompiam como vernos e como as sementes do verbo.
Naquelas cavernas das origens havia Profetas, tontos, crianças e poetas. Eu morava no ente. Eu bem ouvi o tonto dizer: Uma brisa me garça. Achei que algum futuro meu poderia ter esse título (Uma brisa me garça). É pura harmonia letral.
Manoel de Barros"
E aqui fico eu, diante dessa resposta que me empurra para lugares e pensamentos inesperados e me arrasta de meu centro. Quando você pergunta "isso", a pessoa costuma responder: "aquilo". Contudo, com Manoel de Barros, as coisas não se passam assim. Primeira descoberta: em seu tempo, não há linearidade. Como, então, desejar que fale do presente? Como então pensar em instantâneos?
Releio, outra vez, a carta-resposta, em busca de alguma pista mais clara, alguma objetividade, algo a que me segurar. Esqueço que a poesia é um tranco, que nos deixa fora do eixo. A carta está escrita em uma estranha, que mistura o passado com o presente - e não, como eu esperava e lhe pedia, se fixa no presente. Com o filho doente e a idade avançada, com a tristeza a devassá-lo, o presente, por certo, lhe repugna. Ou, pelo menos, não lhe interessa. Na carta-resposta, a palavra "origens" se repete quatro vezes, sinal de que a infância, nem mesmo na escrita, o abandona. A palavra "futuro" só aparece uma vez, quando o poeta pensa no título ("Uma brisa me garça") de um livro que pretende escrever. Sim: a literatura é o lugar do futuro. A palavra presente, porém, não está presente.
Admite Manoel que sempre foi tido "como um parvo". Nunca teve medo nem da ignorância nem da tolice. Ao contrário: sempre as valorizou e nelas se amparou. Ainda agora, quando o mundo o espreme em um deserto, reafirma sua crença. Vê-se, sempre, entre "Profetas, tontos, crianças e poetas". As quatro definições - e não apenas "poeta", como costumamos preferir - lhe caem, na verdade, muito bem. Ato extremo de coragem intelectual. E mais ainda: de nervos capazes de capturar o que só os poetas verdadeiros enfrentam.
Conta-me Martha que seu pai leva a mesma rotina simples de sempre. Na verdade: cada vez mais simples. Ainda escreve, com abnegação, todos os dias. Ainda lê todos os dias. Nisso, nada mudou: o mundo o machuca, mas ele se conserva inteiro. Acorda cedo, escreve ou lê durante toda a manhã e lá pelas 11 horas interrompe o trabalho e toma uma sagrada dose de uísque. Almoça com calma. Dorme um pouco, não muito. Às 15 horas, se levanta para ler o jornal. Abre as correspondências. Faz tudo muito lentamente, mas com grande concentração. Manoel, o poeta das pequenas coisas, das miudezas, dos dejetos, sabe valorizar cada uma das coisas que a vida ainda lhe dá.
Não gosta de computadores. É a filha Martha quem recebe os e-mails, depois faz uma triagem delicada antes de imprimir e lhe passar. É ela, ainda, quem cuida de sua correspondência. Martha é separada. Tem três filhos e três netos. Mora no Rio, no Leblon, mas está sempre em Campo Grande para sustentar a rotina do pai. No escritório, não tem muito trabalho: a correspondência de Manoel, hoje, é pequena. Sua vida está reduzida ao essencial.
"Meu pai gosta de falar bobagem e conversar com gente simples e criança. Fica muito só, por gosto", conta a filha, Martha
Também as leituras de Manoel são muito escolhidas. Relê os clássicos que o influenciaram - em particular, Antônio Vieira. Anda a reler Clarice Lispector. Mas que não se imagine um homem circunspecto e "profundo". Manoel sabe que as delícias e riquezas do mundo estão na superfície, bem à mostra, na nossa cara. É só inventar uma maneira nova para observá-las. Diz Martha: "Meu pai gosta de falar bobagem e conversar com gente simples e criança. Fica muito só, por gosto. Assiste a novelas, gosta de futebol e acompanha os noticiários". Enfim: sob o manto de palavras assombrosas, um homem comum, cada vez mais comum.
Martha é pintora e tem uma parceria criativa com o pai. "Trabalhamos juntos em alguns livros (as iluminuras) que têm mais a ver com um casamento de afinidade poética do que com ilustração". É assim: Manoel sempre reage, ou não reage, por afinidade, ou falta de afinidade. É um homem espontâneo, continua a ser, apesar do presente doloroso. Desde que ficou doente, o filho Pedro está internado em sua casa, com atendimento 24 horas. A sombra do filho perdido há quatro anos, João, ainda o ronda. Conclui Martha, confrontando-me com o real: "Portanto, não há como ele falar do presente, é muito difícil".
Volto a reler a carta-resposta de Manoel. Fala das origens, tenta explicar o "divino absurdo", engrandece a infância. Está sempre em fuga do comum ou, como diz, em busca de "pura inocência para desver o certo". Manoel: poeta do erro. Erro que não é defeito, mas transformação. Um sapo com olhar de garça. A bunda do vento, que só tem o lado de fora. Um homem que abraça a ignorança. Caracóis enrolados em palavras, o formato severo do silêncio, tardes que correm atrás de cachorros. Erros, desvios, improbabilidades, inexistências que a poesia de Manoel, no entanto, leva a existir.
Um mundo despedaçado, em fragmentos, peças soltas que não se encaixam e, quando se encaixam, não formam sentido algum. Resta a alegria das palavras. A alegria de ser poeta. "Eu queria era mudar a feição das coisas", ele me diz. Transformar, distorcer, experimentar, revelar. O tempo todo, Manoel me diz a mesma coisa: só a poesia dá conta do presente.
Só a poesia dá conta do presente,sempre!
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