quinta-feira, 22 de março de 2012

Histórias de Ana - Memórias da Profissão

Mário Schwarz, Ana Tebar e eu, nos estúdios da
campanha do Referendo das Armas, em 2005.
Já fazia alguns anos que eu não encontrava a Ana Maria Tebar. A Ana é dessas mulheres que entram na vida da gente pra nunca mais sair. Num passado recente, ela viveu os seus momentos de poder, sendo uma das mulheres mais decisivas na estrutura do governo paulista. Foi durante todo o governo a assessora mais próxima de Orestes Quercia, enquanto ele governou São Paulo. Mas isso não afetou sua vida. Ana continua como sempre foi, simples, competente, sensível e moderna. A mais pura tradução de uma grande mulher.

Neste fim de semana, junto com o Zé Cerozi (outro grande amigo de longas jornadas), estive em sua casa, em São Paulo. A casa da Ana se traduz em história. Cada peça, cada móvel, cada louça tem lá uma razão de ser. Ana não abre mão da memória, do cigarro e de um bom whisky (nossa conversa foi temperada com um Royal Salute, guardado há anos para aquele reencontro).

Lá pelas tantas, Ana lembrou de um episódio, fruto da relação muito próxima que teve com Oscar Niemeyer e Darcy Ribeiro. E contou uma história deliciosa que, ao registrar aqui, me esforço para tornar perene. É a primeira, da série que vou batizar de "Histórias de Ana"


Um dia, aparece um senhor já velhinho com um monte de papéis nas mãos, diante da minha mesa. Era o Oscar. Queria falar comigo e não com o governador (Orestes Quercia, na época). Pensei calada, o que poderia passar pela cabeça daquele gênio da arquitetura que o conduzisse a mim e não à maior autoridade do Estado?


Oscar trazia uma preocupação. A construção do Memorial da América Latina já estava bem avançada e ele identificara um erro em uma laje, uma daquelas que costumam ter em suas obras, avançada sobre o nada, como que sustentada pelo ar. O diagnóstico do arquiteto era definitivo, a laje teria que ser demolida para corrigir o erro. Senti um frio na espinha. 


Diante de tamanha responsabilidade, insisti para que ele mesmo falasse com o governador. Ele não quis. Despediu-se gentilmente, dizendo acreditar que falando comigo o problema seria resolvido. Mais tarde, num momento adequado, conversei com o governador, expus o encontro que havia tido e o teor preocupante da conversa. 


Quercia pensou, chamou técnicos e engenheiros. Eles comprovaram o erro. A laje foi derrubada. E Oscar, tranquilizado. 


Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer
Passado um tempo, recebo um telefonema dele, Oscar, pedindo uma outra reunião. Voltei a suar frio. No dia marcado ele apareceu em companhia de Darcy Ribeiro, outro que considero um gênio brasileiro. Darcy, espalhafatoso, falava com os braços, amplo em seus gestos. Dizia a todos que quisessem ouvir para aproveitar a experiência do velhinho (Oscar) enquanto ele ainda estava ali. Por ironia do destino, Darcy já se foi. Oscar permanece aí, pensando e criando, aos 104 anos de idade. 


Desta vez, os dois desenrolaram papéis e argumentos sobre a minha mesa. Oscar, com a fala mansa, dizia que, depois de muito refletir, chegara à conclusão de que faltava uma marca ao Memorial da América Latina. Algo de impacto, que ficasse pregado nos olhos e na memória de todos que por ali passassem. E lentamente foi desenrolando um papel onde se via o desenho de uma mão espalmada e um corte ainda sangrando. Era isso o que ele chamava de marca definitiva. Uma elegia, uma referência explícita às Veias Abertas da América Latina, descritas com maestria no livro do escritor uruguaio Eduardo Galeano


Outra vez, ele recusou-se a falar com o governador. Dizia que falando comigo era o suficiente. E eu, assustada com tamanha responsabilidade, não tinha outra alternativa senão defender as suas idéias junto ao governador. 


A história comprova que Oscar estava certo. A mão espalmada, com as Américas sangrando, está lá. E é o símbolo maior daquele memorial. 

5 comentários:

  1. Maranhão !!!! Isto é muito mais que um carinho apenas, é uma demonstração de amor e amizade sem tamanho! Nem sou tudo isso que você fala mas, você falando, eu sou ! E você recolheu, psicografou aquela história que contei despretenciosamente, ilustrando-a, dando cenário e vida´às falas e sentimentos, recuperando um pedacinho da história deste país, com seu texto sempre maravilhoso, envolvente e sábio.
    Saiba que é sempre um privilégio estar com você, aqui ou em encontros memoráveis como foi o daquele fim de semana, que guardarei com todo o amor em meu coração e em minha memória.
    Obrigada, querido amigo ! Beijos carinhosos !

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  2. Adorei, vou cavocar nas minhas lembranças e contar também umas historias da Dona Ana, bjs

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  3. É tão bom ler histórias contadas assim, ao pé do ouvido. É como se ninguém mais soubesse, um segredo dado de presente. Você, generosamente, divide o presente com a gente. Obrigada.

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  4. Olá, Maranhão!
    Que texto primoroso você tem! Mário sempre diz que é um dos melhores que ele conhece. Elogio justíssimo!
    Acredito que facilite um pouco ter como mote uma mulher fascinante como a Ana e as histórias deliciosas guardadas no baú dela. Só precisa cavocar, como disse o Robertinho.
    Grande abraço.
    Vera Schwarz

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  5. Oi Verinha!!! Agradeço as suas palavras carinhosas. O Mário também faz parte da minha lista de amigos de sempre, ele próprio, exemplo de belo texto. Beijo procê e um grande abraço pro Mário.

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