Fazendo, como se fosse mágica, a tristeza virar alegria por três ou
quatro dias inteiros. É lá que a brincadeira de carnaval é mais do que
brincadeira. É a tradução da verdade vestida em uma fantasia colorida, que só
se desfaz muito depois da quarta-feira de cinzas.
Todo menino que nasce na Madre D’eus traz no pulsar das
veias a batida dos tambores. À primeira batida e o corpo se faz vibrar, como se
estivesse todo tomado. Ficar parado é impossível. Com ele também era assim.
Naquela tarde, ele subiu a Avenida Rui Barbosa, cruzando o Beco do Gavião em
direção ao Largo da Saudade. O roteiro do bloco era casual. Ia até onde a força
permitisse, até onde a alegria durasse. E só parava vencido pelo cansaço ou por
outro bloco qualquer.
Ia junto com o "Caroçudo", bloco que ajudara a criar; junto com amigos de infância, entre os quais Bumbunga, Nildo, Coscotô,
Carretel, Maju e Junior Carajás, filho de “seu” Antônio da quitanda.
Cantavam de tudo pelo caminho. De velhas marchas de
carnaval, hinos que embalaram muitas gerações, até as novas e mais picantes versões
que traziam muito da malícia sacana dos meninos do bairro.
Havia, porém, um canto especial. Uma espécie de identidade da
Turma do Quinto a escola de samba maior da Madre D’eus. Aquela que embalou a
infância de todos e que, antes disso, acolheu avós e pais em suas andanças.
“Ai, ai, ai,
Eu vou descer pra cidade,
eu vou mostrar pra essa gente,
o que é sambar de verdade.
Lá na Vila tem,
tem samba de verdade,
lá na vila tem,
tem samba de verdade,
Ai, ai, ai, ai, ai,
eu vou descendo da vila pra cidade”
E isso se repetia, repetia e repetia... Cada vez com maior
emoção. Cada vez mais de verdade. Aquilo era a identidade da Madre D’eus, da
Turma do Quinto, de quem nasceu por ali.
Naquele dia, ele rodou com o Bloco por muitas ladeiras e
becos. Cada vez mais gente seguia o Caroçudo. Mas seu coração estava triste de
saudade. O amor de um dia, agora era passado. Justo no carnaval. Justo ali, na
Madre D’eus. Onde a ilha pulsava mais forte.
Entrou na Rua do Passeio, voltou pela Rua do Norte, desceu o Bairro do Lira e foi bater na Areinha. O dia já tinha ido embora quando cruzou com a
quitanda de “Seu” Dico, na esquina da Rua Quatro. Estava de novo no Largo da Madre D’eus
com o coração cada vez mais apertado.
A noite desfez a turma. O silêncio encobriu o som. O último toque do cavaquinho de Godão, o
último gole de cerveja, a solidão e a chuva ocuparam a rua. Dispersão. Sozinho, em frente a casa onde nascera e
triste pela ausência de seu amor, ele foi tomado por um impulso e começou a
correr. Correu na chuva, correu contra ela e contra a solidão. Desceu a ladeira da Belira
e só parou em frente à casa dela. Era tarde. Na hora e no tempo. A cidade
aquietada. O coração dele, não.
Ficou ali por uns instantes. Olhando a janela fechada. Sob a
chuva. Cheio de solidão e tristeza. Foi quando teve a certeza de que no coração dela só cabia o carnaval.
Passista primeira da Turma do Quinto. No coração dele ainda havia lugar pra
ela.
Por um momento, uma lufada de vento trouxe um som distante,
uma batida de tambor bem longe, lá de seu berço. Era a Madre D’eus que o chamava
de volta. E enquanto seguia sozinho uma música lhe ocupava a mente e o coração.
Ai, ai, ai,
Eu vou descer pra cidade
Eu vou mostrar pra essa gente
Que eu sei sambar de verdade...
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