domingo, 11 de abril de 2010
João e Santiago: uma tragédia revelada
Márcia Braga*
O documentário "Santiago" (2006), dirigido por João Moreira Salles, não é um filme sobre os limites entre o documental e a ficção, embora no início pareça encaminhar-se para essa direção. Ao revelar aspectos da história de vida de um homem que foi mordomo de sua família durante 30 anos, João Moreira cria uma espécie surpreendente de espelhamento particular, porque vai ver-se através de seu personagem.
Tudo que exprimimos através da linguagem vem do domínio do pensamento, e em toda tragédia há os momentos do nó e do desenlace. Mas como apresentar o que é falso? É Aristóteles, em Arte Poética, mais uma vez quem explica como age o nosso pensamento: "... quando uma coisa é, e outra coisa tambem é, ou, produzindo-se tal fato, tal outro igualmente se produz, se o segundo é real, o primeiro também o é ou se torna real", e para ele, aí estaria estabelecido o falso. Se temos um antecedente falso (e ele deve existir), se o antecedente for verdadeiro estabelece-se uma relação entre eles, porque o nosso pensamento saberia ser o segundo caso verdadeiro. Nós tiraríamos a falsa conclusão de que o primeiro também é.
E em "Santiago", o falso e o verdadeiro transformam a narrativa em tragédia. Se toda narração é uma sequência temporal, ou seja, há o tempo do narrador e o da narração, também existem o tempo do significado e o tempo do significante. E a relação de João Moreira com o seu mordomo, ou ex-mordomo (o que torna a situação ainda mais trágica), é uma relação de dominação. Embora Santiago já tivesse abandonado os domínios domésticos de sua família, no imaginário ele ainda era o dominado. A cena em que Santiago fala de flores e arranjos de frente para uma parede permanece inexplicável até para o próprio João.
O filme retoma a cartilha do cineasta japonês Yasujiro Ozu (1903/1963): uma câmera precisa e austera. E, apropriadamente, João Moreira insere a última cena do filme "Viagem a Tóquio", de Ozu, em que uma personagem pergunta à outra se a vida é uma decepção, e ela sorri, consentindo.
"Santiago" não é apenas a tragédia do protagonista, mas, principalmente, a de seu diretor. Um momento corajoso de João Moreira ao expor suas limitações, a consciência de que nada mais pode ser feito, já que Santiago se foi. É como se nos dissesse: olhem o que eu não fui capaz de perceber. Talvez, editar e exibir o filme seja uma forma de expiação.
"... as ameaças e as guerras/ havemos de atravessá-las/ rompê-las ao meio/ cortando-as/ como uma quilha corta/ as ondas...", disse uma vez Maiakóvski.
*Marcia Braga é jornalista e professora do curso de Jornalismo da FUNORTE, em Montes Claros, Minas Gerais. Sua auto-definição é um poema: "Meia dúzia de palavras sobre a minha origem: sou mineira de BH, jornalista e artesã, de palavras e objetos".
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