quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Histórias de Ana - Memórias da Profissão


Esta postagem foi publicada originalmente em 22 de março deste ano. Hoje, a Mariza, uma das minhas mais fiéis leitoras e uma assídua colaboradora deste blog, lembrou dela. E sugeriu a republicação. 

Também hoje, recebi uma mensagem da Ana Tebar dizendo que, por sugestão de pauta que eu encaminhei, a Radio Band de SP a entrevistou, exatamente para ouvir essa história deliciosa que um dia ela já havia me contado.

Como coincidências não existem, ai está a republicação.

Mário Schwarz, Ana Tebar e eu, nos estúdios da
campanha do Referendo das Armas, em 2005.
Já fazia alguns anos que eu não encontrava a Ana Maria Tebar. A Ana é dessas mulheres que entram na vida da gente pra nunca mais sair. Num passado recente, ela viveu os seus momentos de poder, sendo uma das mulheres mais decisivas na estrutura do governo paulista. Foi durante todo o governo a assessora mais próxima de Orestes Quercia, enquanto ele governou São Paulo. Mas isso não afetou sua vida. Ana continua como sempre foi, simples, competente, sensível e moderna. A mais pura tradução de uma grande mulher.

Neste fim de semana, junto com o Zé Cerozi (outro grande amigo de longas jornadas), estive em sua casa, em São Paulo. A casa da Ana se traduz em história. Cada peça, cada móvel, cada louça tem lá uma razão de ser. Ana não abre mão da memória, do cigarro e de um bom whisky (nossa conversa foi temperada com um Royal Salute, guardado há anos para aquele reencontro).

Lá pelas tantas, Ana lembrou de um episódio, fruto da relação muito próxima que teve com Oscar Niemeyer e Darcy Ribeiro. E contou uma história deliciosa que, ao registrar aqui, me esforço para tornar perene. É a primeira, da série que vou batizar de "Histórias de Ana"


Um dia, aparece um senhor já velhinho com um monte de papéis nas mãos, diante da minha mesa. Era o Oscar. Queria falar comigo e não com o governador (Orestes Quercia, na época). Pensei calada, o que poderia passar pela cabeça daquele gênio da arquitetura que o conduzisse a mim e não à maior autoridade do Estado?

Oscar trazia uma preocupação. A construção do Memorial da América Latina já estava bem avançada e ele identificara um erro em uma laje, uma daquelas que costumam ter em suas obras, avançada sobre o nada, como que sustentada pelo ar. O diagnóstico do arquiteto era definitivo, a laje teria que ser demolida para corrigir o erro. Senti um frio na espinha. 


Diante de tamanha responsabilidade, insisti para que ele mesmo falasse com o governador. Ele não quis. Despediu-se gentilmente, dizendo acreditar que falando comigo o problema seria resolvido. Mais tarde, num momento adequado, conversei com o governador, expus o encontro que havia tido e o teor preocupante da conversa. 


Quercia pensou, chamou técnicos e engenheiros. Eles comprovaram o erro. A laje foi derrubada. E Oscar, tranquilizado. 

Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer
Passado um tempo, recebo um telefonema dele, Oscar, pedindo uma outra reunião. Voltei a suar frio. No dia marcado ele apareceu em companhia de Darcy Ribeiro, outro que considero um gênio brasileiro. Darcy, espalhafatoso, falava com os braços, amplo em seus gestos. Dizia a todos que quisessem ouvir para aproveitar a experiência do velhinho (Oscar) enquanto ele ainda estava ali. Por ironia do destino, Darcy já se foi. Oscar permanece aí, pensando e criando, aos 104 anos de idade. 

Desta vez, os dois desenrolaram papéis e argumentos sobre a minha mesa. Oscar, com a fala mansa, dizia que, depois de muito refletir, chegara à conclusão de que faltava uma marca ao Memorial da América Latina. Algo de impacto, que ficasse pregado nos olhos e na memória de todos que por ali passassem. E lentamente foi desenrolando um papel onde se via o desenho de uma mão espalmada e um corte ainda sangrando. Era isso o que ele chamava de marca definitiva. Uma elegia, uma referência explícita às Veias Abertas da América Latina, descritas com maestria no livro do escritor uruguaio Eduardo Galeano


Outra vez, ele recusou-se a falar com o governador. Dizia que falando comigo era o suficiente. E eu, assustada com tamanha responsabilidade, não tinha outra alternativa senão defender as suas idéias junto ao governador. 

A história comprova que Oscar estava certo. A mão espalmada, com as Américas sangrando, está lá. E é o símbolo maior daquele memorial. 

2 comentários:

  1. Maranhão ! Obrigada por republicar esse texto seu, que enfeita minhas palavras naquela conversa e é tão vívido como se você tivesse estado lá, presenciando tudo. Este é o grande dom do escritor privilegiado que você é e de quem gosto tanto.
    A propósito da partida do Oscar Niemeyer, peço a permissão para transcrever neste espeço a postagem que publiquei no Facebook e o link da entrevista que você menciona, ao Portal da Band, como nossa homenagem singela a ele.
    ...................
    "Algumas pessoas me perguntaram a respeito da entrevista que dei para o Portal Band e que postei aqui de manhã, a respeito de minha convivência com Oscar Niemeyer. Foi realmente inesperado a reporter ter me procurado ainda ondem à noite, para saber minhas impressões. E é como está na entrevista, tudo aconteceu à época da construção do Memorial da América Latina, quando ele foi convidado para elaborar o projeto pelo Governador Orestes Quercia. E surgiu da parceria do Oscar e do Darcy Ribeiro aquela maravilha que é hoje um dos marcos da cidade de São Paulo. Como eu disse lá, foi um privilégio conhecer e conviver com Oscar Niemeyer e Darcy e viver aquele projeto com a intensidade que contagiou a todos nós envolvidos com a idéia, quase missão. O mundo hoje reverencia e com justiça o gênio que é Oscar Niemeyer, doce e linda criatura, generoso e simples, um mestre da vida.
    Para quem não leu, vai aí novamente o link da entrevista."
    http://noticias.band.uol.com.br/brasil/noticia/?id=100000555188&fb_action_ids=4886379355044&fb_action_types=og.likes&fb_source=other_multiline&action_object_map=%7B%224886379355044%22%3A504568009577339%7D&action_type_map=%7B%224886379355044%22%3A%22og.likes%22%7D&action_ref_map


    beijos

    Ana Maria Tebar

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  2. orgulho de vcs, Donana pela relato, e maranhão pelo espaço. bjo pros dois.

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