segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A arte que salva


Para Celso e Nelson


“A primeira vez” é um conceito único. Embora sejamos sempre tentados a imaginar o contrário.  A primeira vez pressupõe a sequência  de uma segunda ou terceira vez. Mas, pensando bem, não há como acontecer uma “outra” primeira vez. Portanto, a primeira vez é única.

O meu primeiro registro de um banho de chuva aconteceu ainda criança, nas ruas da Madre Deus, seguindo meu pai, correndo na rua. Era uma corrida específica, para banhar-se na chuva. Era a minha primeira corrida consciente, ao lado de meu pai e na chuva. E como eram grandes aqueles pingos. E como era estranha e desafiadora aquela sensação. E como havia prazer em desbravar o desconhecido. Foi a primeira vez.


A primeira carta que escrevi foi de saudades. Sozinho em meu quarto, exilado de minha terra. Um exílio involuntário. Uma transposição de tempo e espaço que me levou do Nordeste ao Sul e que marcou a minha vida. Escrevi para destinatários que nunca leram minhas cartas. Acho que nunca as enviei de verdade. Meus amigos de infância, Nildo e Bumbunga, eram meus confidentes imaginários. Penso que eu descrevia a solidão, a vontade de estar com eles, de jogar bola na rua, de correr atrás de papagaio. Foram as primeiras linhas e creio que marcaram o nascimento do amor que tenho pela escrita e pela literatura.

A primeira vez...
Tive muitas e variadas.
Todas, únicas.


Quando o coração bateu mais acelerado por outro alguém; quando descobri sentido na história humana; quando soube dos ideais revolucionários; a magia da tela enorme do cinema; o primeiro gol; o equilíbrio instável na bicicleta, sem o auxílio das rodinhas; o feitiço deslumbrante da música; os pés na areia; o fogo, a queda, o sangue correndo na testa; a ferida aberta; a poesia de Quintana; o sabor do camarão; a sede; o gole d’água; o cheiro do café torrado; a primeira taça de vinho; a primeira visão do mar; o mar...


Dias atrás, vivi um dia destes, de primeira vez.

No ambiente político, em que trabalho com maior frequência, há dias que nascem perdidos, aborridos, insuportáveis. Nestes dias, torce-se por um hiato no tempo, um sopro de leveza que torne o ar mais suportável. Só um milagre pode salvá-los.

E como milagres acontecem, há deles que vem cheios de arte. São os melhores.

Naquele dia, fazia um calor intenso. Havia tristeza e frustração, dúvidas e aflição no ar. Foi quando conheci Celso Albano. Ele e seu atelier foram o sopro de oxigênio que salvaram o dia.

Celso Albano
Celso é um senhor de movimentos leves e fala suave. Tem a habilidade dos sábios para guardar detalhes preciosos sobre as obras que vela (não as vende por vender). A cada uma delas cabe uma história, um sentido especial. E é esse conjunto que lhe atribui valor.

Na “casa” de artes e antiguidades do Celso há um pouco de tudo. Dos românticos aos modernos. Dos clássicos aos marginais. Em sua parede se misturam num desequilíbrio sagrado Heitor dos Prazeres e PicassoGlênio Bianchetti e Poteiro. Carlos Scliar e Milton Dacosta.


Há entre as peças expostas uma harmonia quase musical. E os olhos vibram. E as horas passam. E o dia se salva. Enquanto estive lá dentro pensei no prazer que Margot Marques sentiria em conhecer aquele ambiente. Ela, que uma vida inteira carregou a dignidade em uma mão e paixão pelas artes nos olhos e no coração, certamente entraria em êxtase.

Glênio Bianchetti
Ladrão de Galinhas
de Heitor dos Prazeres
Eu mesmo me surpreendi com o efeito terápico daquela visita. O atelier do Celso é uma dessas surpresas desavisadas que Brasília guarda com discrição. Entre a confusão do trânsito e os prédios modernistas de Niemeyer. Um hiato de tempo e espaço, preenchido com a mesma mansidão das horas leves da cidade de Montevideo.  

Antônio Poteiro
Milton Dacosta
Foi Nelson, amigo de Celso, quem me apresentou a ele. Por alguma razão, imagino que aquele lugar também lhe salvou as horas da tarde de um dia perdido. Haverá outras. Tenho certeza. Mas essa primeira vez  estará gravada, em definitivo, na minha memória. 

2 comentários:

  1. Já te li muitas vezes e todas as vezes tem gosto de primeira vez. Obrigada pelo ano inteiro de letras, obrigada por este texto. Um 2013 regado de abecedário para todos nós. Beijos.

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  2. Lendo esse texto lembrei da alegria que você me contou sobre essa tarde triste que se tornou tão alegre e especial. Tenho certeza que Nelson e Celso irão adorar esse registro magistral, típico seu.
    Abraço e feliz 2013, meu amigo.

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