Para Celso e Nelson
“A primeira vez” é um conceito único. Embora sejamos sempre
tentados a imaginar o contrário. A
primeira vez pressupõe a sequência de
uma segunda ou terceira vez. Mas, pensando bem, não há como acontecer uma
“outra” primeira vez. Portanto, a
primeira vez é única.
O meu primeiro registro de um banho de chuva aconteceu ainda
criança, nas ruas da Madre Deus, seguindo meu pai, correndo na rua. Era uma
corrida específica, para banhar-se na chuva. Era a minha primeira corrida
consciente, ao lado de meu pai e na chuva. E como eram grandes aqueles pingos.
E como era estranha e desafiadora aquela sensação. E como havia prazer em
desbravar o desconhecido. Foi a primeira vez.
A primeira carta que escrevi foi de saudades. Sozinho em meu
quarto, exilado de minha terra. Um exílio involuntário. Uma transposição de
tempo e espaço que me levou do Nordeste ao Sul e que marcou a minha vida.
Escrevi para destinatários que nunca leram minhas cartas. Acho que nunca as
enviei de verdade. Meus amigos de infância, Nildo e Bumbunga, eram meus
confidentes imaginários. Penso que eu descrevia a solidão, a vontade de estar
com eles, de jogar bola na rua, de correr atrás de papagaio. Foram as primeiras
linhas e creio que marcaram o nascimento do amor que tenho pela escrita e pela
literatura.
A primeira vez...
Tive muitas e variadas.
Todas, únicas.
Quando o coração bateu mais acelerado por outro alguém;
quando descobri sentido na história humana; quando soube dos ideais
revolucionários; a magia da tela enorme do cinema; o primeiro gol; o equilíbrio
instável na bicicleta, sem o auxílio das rodinhas; o feitiço deslumbrante da
música; os pés na areia; o fogo, a queda, o sangue correndo na testa; a ferida
aberta; a poesia de Quintana; o sabor do camarão; a sede; o gole d’água; o
cheiro do café torrado; a primeira taça de vinho; a primeira visão do mar; o
mar...
Dias atrás, vivi um dia destes, de primeira vez.
No ambiente político, em que trabalho com maior frequência,
há dias que nascem perdidos, aborridos, insuportáveis.
Nestes dias, torce-se por um hiato no tempo, um sopro de leveza que torne o ar
mais suportável. Só um milagre pode salvá-los.
E como milagres acontecem, há deles que vem cheios de arte.
São os melhores.
Naquele dia, fazia um calor intenso. Havia tristeza e
frustração, dúvidas e aflição no ar. Foi quando conheci Celso Albano. Ele e seu
atelier foram o sopro de oxigênio que salvaram o dia.
Celso Albano |
Celso é um senhor de movimentos leves e fala suave. Tem a habilidade dos sábios para guardar detalhes preciosos sobre as obras que vela (não as vende por vender). A cada uma delas cabe
uma história, um sentido especial. E é esse conjunto que lhe atribui valor.
Na “casa” de artes e antiguidades do Celso há um pouco de
tudo. Dos românticos aos modernos. Dos clássicos aos marginais. Em sua parede
se misturam num desequilíbrio sagrado Heitor dos Prazeres e Picasso. Glênio Bianchetti e Poteiro. Carlos Scliar e Milton Dacosta.
Há entre as peças expostas uma harmonia quase musical. E os
olhos vibram. E as horas passam. E o dia se salva. Enquanto estive lá dentro
pensei no prazer que Margot Marques sentiria em conhecer aquele ambiente. Ela, que uma vida inteira carregou a dignidade em uma mão e paixão pelas artes nos olhos e no coração, certamente entraria em êxtase.
Glênio Bianchetti |
Ladrão de Galinhas de Heitor dos Prazeres |
Eu mesmo me surpreendi com o efeito terápico daquela visita. O
atelier do Celso é uma dessas surpresas desavisadas que Brasília guarda com discrição. Entre a
confusão do trânsito e os prédios modernistas de Niemeyer. Um hiato de tempo e espaço, preenchido com a mesma mansidão das horas leves da cidade de Montevideo.
Antônio Poteiro |
Milton Dacosta |
Foi Nelson, amigo de Celso, quem me apresentou a ele. Por alguma
razão, imagino que aquele lugar também lhe salvou as horas da tarde de um dia
perdido. Haverá outras. Tenho certeza. Mas essa primeira vez estará gravada,
em definitivo, na minha memória.
Já te li muitas vezes e todas as vezes tem gosto de primeira vez. Obrigada pelo ano inteiro de letras, obrigada por este texto. Um 2013 regado de abecedário para todos nós. Beijos.
ResponderExcluirLendo esse texto lembrei da alegria que você me contou sobre essa tarde triste que se tornou tão alegre e especial. Tenho certeza que Nelson e Celso irão adorar esse registro magistral, típico seu.
ResponderExcluirAbraço e feliz 2013, meu amigo.