terça-feira, 15 de abril de 2014

Short Cuts de Abril

Correspondências I


Caixas de papelão costumam guardar preciosidades. Coisa que o tempo não consegue apagar. No meu caso, devo reconhecer uma predileção por guardar escritos. Minhas caixas de guardar coisas guardam registros de um tempo, sensações de viver, pessoas, imagens, palavras, tudo o que de certa forma compõe a minha essência.

Volta e meia, dou de cara com uma dessas "caixas de memória". Principalmente, nos períodos de mudança. Mudança, aliás, é sinônimo de revirar o passado, perceber o presente e vislumbrar o futuro.



Cá estou, numa dessas tardes de sol e chuva, revirando caixas e me deparando com o que já foi, sem nunca ter deixado de ser. Assim, meio que sem querer, cai em minhas mãos um envelope contendo uma carta de meus avós, enviada desde São Luis, no Maranhão, para o repórter em começo de carreira que eu fui, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

Era o ano de 1985. Minha avó, nascida no último ano do Século XIX, trilhava a metade dos seus 85 anos. Meu avô era 11 anos mais novo. Nesse tempo eles usavam os serviços de "fazedores de cartas", como o papel que a Fernanda Montenegro tão bem desempenhou, no filme Central do Brasil, para transcrever pensamentos e mandar notícias.

Fernanda Montenegro, escrevendo cartas na Central do Brasil.
As cartas de meu avô e de minha avó, invariavelmente, começavam desejando que eu me encontrasse bem de saúde. E informando que eles lá "estavam bem, com a graça de Deus". Também invariavelmente, terminavam desejando que as suas bênçãos recaíssem sobre o meu caminho, para me proteger de todo o mal.

Nesta carta, especificamente, eles agradeciam a minha intenção de buscá-los em uma viagem atravessaria o país, de Norte a Sul. Eu me casaria no Rio Grande do Sul em poucos dias. Reconheciam não ter disposição e nem forças para empreender tamanha jornada, ainda que para evento tão importante na vida do neto primeiro.

Seu Opílio e Dona Antonieta, meus avós.
Eu, aos dez anos, e meus irmãos.
Roupa de domingo e bênçãos protetoras. 
Penso e revivo tudo em minhas mãos, graças à singeleza de um envelope e seu conteúdo. O tempo é uma brincadeira engraçada. Com a mesma velocidade que leva pessoas queridas, as traz de volta. como num asse de mágica.

Correspondências II 

Meus filhos recebem uma carta do avô Viegas. Sim. Meu pai mantém o hábito de usar o serviço dos Correios, apesar da internet. A cada fim de ano, ele me mostra orgulhoso sua lista de mais de 400 correspondentes. Infelizmente, nem a metade responde suas cartas. Mas isso não o faz desistir de escrever a mão, assinar, endereçar, selar e postar centenas de cartas, todos os anos.


Seu Viegas agora pretende envolver os netos nesse rito. E começou por Mariana e Gabriel. Dias destes,  chegou em casa uma carta endereçada "à Cineasta Mariana Franke Viegas". Pompa e circunstância típica de avô carinhoso.

Dentro do envelope, um conto escrito por ele, cujo final exige a participação de uma documentarista - Mariana, sua neta, claro! O documentário é uma espécie de registro de um sarau literário imaginário, feito com a participação dos seus dez netos. Uma viagem carinhosa do avô.

Mariana, Seu avô, Viegas e meu irmão.
Começaram os registros da cineasta. 
Algo que merece ser guardado em uma caixa de memória (a carta) e que exige esforço breve de produção (o documentário). De repente, percebo que a tradição memorial que norteia minha alma transcende os limites do tempo e do espaço. Para se perpetuar no sempre, de outras gerações.  


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