quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O acaso do dia


A cor azul do dia em nada combina com o meu estado de espírito. Lá fora, o dia brilha. Em mim, internamente, o tempo é de chuvas e trovoadas. Dessas tempestades que se assemelham a furacões. Que, por onde passam, vão deixando a terra arrasada.

Apesar dessa convulsão temporal interna, a vida exige equilíbrio, sob pena de se perdê-la. Então, recorro à belezura externa do dia para alcançar um mínimo possível de equilíbrio interno. O que dê pro gasto. O que me leve até a virada do próximo dia.

Maria, a caçadora.
Na saída de casa, cruzo a parede de vidro que compõe a divisa entre a sala e o jardim e quase piso em um pássaro estendido ao chão. "A Maria, atacou de novo..." penso comigo, atribuindo aquela imagem a mais uma das investidas da lhasa apso que temos em casa e que, volta e meia, testa o seu instinto de caçadora em passarinhos desavisados.

Percebo que não é um pássaro comum. É um beija-flor. E dos grandes. E percebo mais, ele não está morto. Esqueço o resto. Esqueço a tempestade interna. Clareio o dia diante do acaso. Diante da possibilidade de entender o que aconteceu a aquele pássaro e de salvar-lhe a vida.


Solto minha pasta, a chave do carro, largo tudo. Me abaixo e o apanho com a mão. Sim. ele está vivo e assustado. Paralisado. Presumo que ele tenha sido enganado pela imagem refletida do vidro. O que pensou ser um pedaço de céu, era uma parede de vidro. E o choque, em pleno voo se transformou em acidente de percurso.

Ele já teve sorte demais. primeiro por estar vivo. Depois, por ter ficado um bom tempo na calçada de casa, sem que a Maria percebesse. Carrego-o até o bebedouro. Vejo aquela delicada língua se mover, num vai-e-vem típico dessas aves. Ele abre os olhos. Bebe mais água. Volto pro jardim pensando em colocá-lo protegido, numa planta com flores vermelhas que eles adoram.

Hora do descanso.
Me lembro que, bem ao lado existe uma árvore em que eles costumam descansar, depois de suas rápidas investidas nas flores. Aproximo a minha mão de um dos galhos. Abro a mão e ele começa a bater assas, como um pequeno helicóptero, parado no ar. Zás! Dispara por entre os galhos. Ganha o muro azul e pousa.

Fica me olhando enquanto eu também o encaro. Eu lhe salvei a vida. E ele sem querer me salvou o dia.  


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