terça-feira, 14 de abril de 2020

Diários de Quarentena - Acabou Chorare

Morou, Moraes? Se não morou, não mora mais.


O velho adágio popular brasileiro me vem agora à cabeça. Não sei exatamente por quê. Talvez, pela sonoridade poética. Talvez, pela casualidade da rima. Talvez, pela mistura com o nome do Moreira que acaba de nos deixar. Moraes Moreira, o novo baiano mais autêntico, o que está na gene, na formação primal do grupo "Novos Baianos". Sim, Moraes Moreira não mora mais entre nós. Morou?  Moraes partiu desta para cantar em outras rodas, para brilhar em outro plano solar.

Quando Mariana, minha filha, se entendeu por gente, percebeu que eu sempre cantava uma música pra ela, cujo refrão dizia repetidamente "preta, preta, pretinha...". Além de me ver cantar, ela ouvia na vitrola, no rádio, várias vezes, em vários e diferentes momentos. Não sei o que passava em sua cabeça, mas sei que ela gostava. Porque não demorou a aprender a letra e o refrão. E volta e meia, eu a surpreendia cantarolando aquela canção.


Tempos mais tarde, ela me contou uma história, que tento reproduzir aqui da maneira como compreendi. No dia em que ela viu a imagem do Moraes Moreira pela primeira vez, aquele camarada esguio, de cabelo comprido, associou de imediato com a imagem do pai dela (no caso, eu mesmo) que sustentei durante muitos anos uma vasta cabeleira e o gosto por óculos daquele estilo que ele gostava de usar, redondos.

Pra ela, desde então, aquele sujeito era a minha própria encarnação e tinha feito aquela música pra ela. Sem que ela nunca me perguntasse antes, eu nunca tive preocupação de negar a autoria da música. Então, durante um bom pedaço da vida, fui o pai artista, Moraes Moreira, pra ela.

Ontem, ao saber da notícia da morte dele, meu coração ficou mais triste. E, tenho certeza, o dela também. Um pedaço muito especial dos tantos "eus" que já fui, se foi com ele.

Os novos baianos nunca mais se juntarão outra vez, como tiveram a oportunidade de fazer, quatro anos atrás, e rodar o Brasil com uma turnê saudosa e cheia de clássicos. As mesmas melodias que embalaram a dura década de setenta. E nos deram alegria real, em tempos de liberdade restrita.


Não faz muito tempo, descobri que meu irmão, Iram, não tinha senão uma vaga ideia sobre a história dos Novos Baianos. Decidi promover, então, uma sessão de cinema para lhe mostrar algo primoroso, o filme "Filhos de João - O admirável mundo Novo Baiano", de Henrique Dantas. Este documentário ganhou o prêmio de melhor filme , do juri popular e prêmio especial do Juri, do Festival de Cinema Nacional de Brasília, em 2011. E é um documentário fabuloso.

A sessão nos fez varar a madrugada falando sobre música e poesia, sobre a passagem do tempo, sobre a vida em coletividade, sobre sonhos e realidade. E exigiu o consumo de duas garrafas de vinho.


Hoje, acordo com o celular pipocando uma mensagem no WhatsApp. É meu irmão me cobrando: Cadê o seu texto sobre o Moraes Moreira. Abro a janela da quarentena. E escrevo. Acabou Chorare. Está aqui, meu irmão!

Um comentário:

  1. Em tempos de "guerra", só Mestre Maranhão pra amenizar vida. Poesia sempre faz bem. A benção!

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