domingo, 16 de setembro de 2018

Memória de cinema


Ontem, fui ao cinema.
Fazia algum tempo que não ía. Já na fila pra comprar o ingresso, ouço alguém me chamar. "Ei, Maranhão!" Minha surdez esquerda me impede de saber, de imediato, de onde vem o chamado. Mas não me impede de reconhecer, um pouco mais à frente a figura do Nilson Araújo.

Encontro desses, assim, inesperado. Nilson chegou a mim pelas mão de minha querida Margot (Margarida Marques). Como amizade não exige medida, ficamos amigos, um pelo outro. E todos por nós.

Nilson me pergunta há quanto tempo estou por Brasília. Faço as contas. Já se vão doze anos. E nos surpreendemos, ambos, com a nossa distância. Um abraço. Um combinado de não deixar o tempo ceder à distância novamente. Domingo, quem sabe, a gente se vê de novo.

Pago o ingresso. Vou assistir "O Paciente". Entro na sala quase vazia. São seis ou sete pessoas comigo. E eu gosto de cinemas assim. Vazios, são como se fossem meus. Me sinto mais à vontade pra sentir o filme por completo.

Neste caso, o filme é também uma espécie de reencontro com uma Brasília de tempos atrás. "O Paciente" conta a história do curto e doloroso período de calvário, entre a descoberta da doença e a morte de Tancredo Neves. O presidente que foi sem nunca ter sido. Como eu já falei aqui mesmo neste blog, tempos atrás. 

É estranho entrar num filme cujo final não é segredo pra ninguém. Todos sabem como termina, antes mesmo do filme começar. Tancredo morre sem subir a rampa do Palácio de onde deveria governar e conduzir o início do processo de redemocratização do Brasil - interrompido vinte e um anos antes pela ditadura militar.

Me pergunto o que faço ali e a resposta é nítida. Estou em busca do que fui no passado. Da minha própria história profissional. Eu explico. Havia pouco, eu tinha saído da universidade e aceitado um convite para ser repórter da TV Bandeirantes em Dourados, no interior do Mato Grosso do Sul.

A convalescência de Tancredo exigiu da Rede Bandeirantes a convocação de pelo menos mais uma equipe para atuar em Brasília. E a equipe da Band de Dourados estava na lista pela proximidade geográfica. E assim, do dia pra noite, virei correspondente nacional, na cobertura de maior impacto da TV Brasileira  naquele momento.

Minha missão era ficar na portaria do Palácio do Jaburu, residência oficial do vice-presidente eleito, José Sarney. Minha vida em Brasília era marcada por plantões que não terminavam nunca. Até que a morte de Tancredo foi anunciada, por Antônio Brito, perto das nove da noite de um domingo, dia 21 de abril de 1985.

No link que inscrivi ali em cima, você vai saber que a minha companhia, naquele exato momento, era a de um velho amigo de lides estudantis, o Hugo Studart, à época, repórter do Jornal do Brasil. Nós éramos dois jovens iniciantes na profissão. Com um desafio imenso de relatar um momento único da vida política nacional.

Hoje, na sala quase vazia do cinema, sou tomado por um misto de euforia e angústia, como se estivesse vivendo tudo de novo. Mas agora, pelo lado de dentro da história. Alcançando detalhes que  naqueles dias eram impossíveis de se alcançar.

O medo de Tancredo - o de que os militares não passassem o poder a Sarney - era o mesmo que todos nós vivíamos. Por isso, mesmo sentindo um dor imensa e com os médicos suspeitando de uma apendicite, ele pedia antibióticos e recusava a ideia de uma intervenção cirúrgica. Acreditava ser capaz de suportar a dor até a hora de assumir a Presidência.

Mas os detalhes que o levaram à morte só vieram à tona muito tempo depois. Meus olhos frios de agora me permitem concluir que o combinado presunção/vaidade/arrogância teve um papel decisivo no desfecho mortal de Tancredo.

A foto original, feita por Gervásio (um dos mais importantes fotógrafos de Brasília) .
A cena reproduzida, no filme de Sérgio Rezende. 
Mas outro aspecto sobressai na história do filme que chega às telas agora. Já naquela época havia uma precariedade na estrutura hospitalar de Brasília. Precariedade que ía da falta de equipamentos à burocracia.

Num determinado momento, crucial para saber a abrangência dos efeitos de uma infecção no corpo do presidente, o diretor do Hospital de Base admite, constrangido, que um exame não poderia ser feito aquela hora da noite porque o equipamento estava trancado em uma sala. E o responsável pela sala, que levava a chave pra casa... morava em Sobradinho. Quem conhece Brasília sabe o que isso significa em termos de distância e tempo.  Existem pelo menos uns 25 quilômetros separando o Hospital de Base da cidade de Sobradinho.

Tancredo morreu depois de ter o corpo aberto, para grandes intervenções cirúrgicas, por três vezes, em menos de um mês. A estrutura orgânica daquele senhor de setenta e cinco não resistiu a tanta invasão. O ego e a vaidade dos médicos também contribuíram para o desfecho trágico.

O filme de Sérgio Rezende é precioso porque consegue traduzir o clima tenso daqueles dias. A caracterização de Othon Bastos no papel de Tancredo é impressionante. Esther Góes faz uma Risoleta Neves vigorosa. Paulo Betti mostra um professor-doutor Pinotti em quem a vaidade pesa mais que o conhecimento (pelo menos, neste caso).

Othon Bastos, como Tancredo Neves. 
Naquele vinte e um de abril morreram Tancredo e um pedaço da Democracia, que tentava ressurgir no Brasil. A Nova República nascia envelhecida.

No escuro do cinema senti, outra vez, todas as angústias do jovem repórter que eu era. Quando o caixão de Tancredo ganha as ruas em imagens reais, documentais, e Milton Nascimento começa a cantar é impossível não viver aquela dor, outra vez. Saio da sala e piso de novo na realidade. O tempo não para. E os antibióticos, nos quais Tancredo tanto confiava, continuam não servindo para salvar o país do desarranjo político em que nos metemos, desde que ele se foi.      
 


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