sábado, 5 de setembro de 2015

Tempo de entregas


O tempo é de entreguidão.
Minha curta vida de 53 entra em fase de desapego.
Entrego para guardar. Entrego sem solfejo tudo o quanto já não me pertence.

Assim, me preparo para receber o resto que me resta de vida.
Não há senão uma pequena dor no corpo – talvez, da vesícula que já me avisou, 
quer também sair de mim.

Torço por uma despedida sem litígio. 
Peço-lhe em silêncio que aguarde um pouco mais.
O tempo do desapego vesicular ainda se faz em construção.

Do ouvido caverna que tenho do lado esquerdo da cabeça, o eco oco é sem sentido.
Um zumbido que me acompanha desde que entreguei, também, meus instrumentos auditivos, que me situavam melhor ante o mundo.

Nesta manhã de sábado abro o meu jornal virtual 
e dou de cara com o meu melhor poeta vivo, Ferreira Gullar.
Está aos 85. Seu tempo de entrega é mais longo. Seu desapego, maior.

Ferreira Gullar
Foto: Zô Guimarães/Folha Press
Vô Opílio
Pensa com todas as letras em não mais escrever poesias. Não que não as queira mais. Elas é que não lhe vem como vinham antes. Elas e o espanto com o mundo que lhe alimentava a inspiração. O mundo, diz o poeta, já não lhe espanta mais.

O olhar sisudo de Ferreira, sua parede de quadros, sua lentidão nos movimentos, seus longos cabelos brancos. Tudo, em Ferreira, é majestático.

Leio atentamente com um pesar intraduzível. Ferreira é mais do que meu poeta vivo. Maranhense, como eu, é de um tempo que conheço apenas nas descrições imaginárias de meu avô Opílio.

Nessa manhã de sábado, a consciência desse tempo de entregas me faz perceber melhor a passagem do tempo. Meu filme vital explode em meu pensamento.

Corrida na chuva; jogo de bola-de-meia na fábrica de arroz; banhos matinais no tanque da casa de tia Luzia; bolinha de gude; caminho da escola; areia branca e mar. O mar salgado da areinha. 

O mar esverdeado de minha ilha de São Luis. A ponte, as comportas da represa, o bairro do Anjo-da-Guarda, a Madre Deus e seus sotaques – matraca, pandeiro, caboclo de penas, mãe Catirina e pai Francisco. 

Meu primo Jorge, minha tia Dica, Bunbunga, Coscotô, Nildo, Junior Carajás e Carlinhos carretel. Djé e seus olhos grandes. Eis o meu time de infância, eis meu espelho matinal dos dias em que estive menino.

Leio, escuto, penso. Há uma sede de que esse tempo não dure tanto. 
De que essa seca de horizontes se molhe enquanto há dia, enquanto os ipês florescem nas ruas.

Nessa manhã de sábado de entregas, entrego meus desejos ao acaso e à sensibilidade dos que me guiam, me protegem e me guardam.


A poesia, enfim, segue comigo.

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