sábado, 22 de fevereiro de 2014

Short cuts - de fevereiro


Uganda. Era o apelido dele. Parecia um Ébano, um Deus negro. Retinto, como se diz no Maranhão. Era auditor. Era de uma nobreza sem par. E se sabia bonito.

Uganda tinha manias. Almoçava e tirava um cochilo encostado em uma porta. A porta, diziam já tinha a medida côncava das costas dele. Era solteiro convicto. Mais tarde, adotou uma menina. Linda, educada, cobiçada por todos os seus amigos.

Ele tinha um Del Rey que cuidava como se fosse sua namorada. O carro era um brinco. Sempre que chegava, se anunciava: "Auditoria, na área".

Um dia, voltava pro carro, no fim do expediente. E encontrou um safado tentando roubar o pneu do Del Rey. Uganda virou macho e deu uma bronca no ladrão. O malaco, quase sem desviar o olho do que fazia, retrucou: "Que isso, negão, deixa de onda e rouba o retrovisor,  porque o pneu já é meu!"

Foram as últimas palavras dele antes de levar uma coça. "Seu" Uganda não deixou por menos.

Velhos amigos


Havia muito, eles não se viam. Foi uma alegria. Se conheciam desde meninos. Cresceram juntos, frequentaram a mesma escola. No auge da juventude, iam a festas, disputavam as meninas da turma, eram como irmãos. Mas a vida os fez distantes.

Não o suficiente para se esquecerem um do outro.
Isso, não. Agora, por exemplo, estavam ali.
Frente à frente, emocionados e saudosos.

Começaram a relembrar as aventuras, priscas eras. Entre uma lembrança e outra, começaram a rir das disputas ingênuas, típicas de moleques. O campeonato de cuspe à distância, as corridas de rolimã, as caçadas de passarinho...

Um deles lembrou também que havia uma disputa comum nos fins de festas: Quem conseguia urinar mais distante, o jato mais forte. A prova de fogo da uretra.  A urina, aliás, servia para vários fins. Os românticos se aliviavam escrevendo o nome da amada. Para isso também havia concurso. Ganhava aquele que escrevesse o nome completo, com letra cursiva. Haja bexiga!

Riam-se como meninos.
E como meninos é que veio a ideia:

Vamos relembrar as velhas disputas? Vamos ver quem urina mais longe? 
Cê tá louco, isso não é mais pra nós.
Vamos, rapaz, deixa de onda. Tá com medo de perder?

Depois de muita insistência, um concordou com o outro e as regras foram estabelecidas. Um de costas pro outro. À terceira contagem, a prova começava. E assim foi. A tarde caia. A praça vazia, ideal para um duelo livre de testemunhas.

1, 2, 3, já!

Um silêncio quebrado apenas pelo barulho líquido dos dois. O primeiro, sem se virar, fala:
Acho que perdi, molhei toda a ponta do meu sapato. 
Ao que o outro contesta: Perdeu nada, eu estou com a calça toda molhada.  

Riram-se, como nos velhos tempos, como meninos que foram um dia.

O baile da vida


Astolpho estava perto de completar cem anos. Nadava três quilômetros toda manhã. Silvéria, já com os seus 95,  o acompanhava pela beira da praia. Com um olhar no horizonte, sem perder de vista o companheiro. O sol das sete horas era um presente. Seus cabelinhos brancos, esvoaçados, estabeleciam um contraste poético com o azul esverdeado do mar.

Os dois não se importavam com a idade. Viviam a vida com o vigor de dois jovens. Quando esfriava no Sul, corriam para o Rio de Janeiro. No verão, desciam para Garopaba. Porto Alegre lhes tinha por alguns meses. Assim se dividiam entre a praia catarinense, o Parque da Redenção e as noites na gafieira carioca.

Silvéria contava que um dia quebrou a perna. Passou um bom tempo em recuperação. Andava com a ajuda de muletas. Já no fim do resguardo, foram ao Rio e lá, a um salão de festas. Silvéria gostava de dançar. Convidou Astolpho. Ele, "pé de valsa" que só, quis saber se ela já podia.

Silvéria não teve dúvidas, atirou a muleta pro lado e, com um olhar juvenil, cheio de desejo, lhe disse: "Se eu não puder nós já vamos saber". Dançaram uma noite inteira. Até o sol raiar.

Música de sábado

Gabriel conversa comigo. Sobre a vida. Sobre a rua. Sobre a tese política, sobre a falta de rumo. De repente ele diz que quer me mostrar uma música. "Vi e gostei, pai. É tão simples, é tão leve! Acho que você vai gostar". Taí, então. Gostei.

2 comentários:

  1. É muito bom ler as histórias que você vai juntando. Pode ser de ver ou de ouvir, pode ser de sentir, não importa o jeito que elas foram parar em você. O formato final, arrumado e inventado, deixa a história especial e no fim da leitura não tem ponto, tem sorriso. Obrigada.

    ResponderExcluir
  2. Agora e finalmente mais orfã, com o desaparecimento da Silvéria. A última de uma linhagem, como se diz em minha terra. Fiquei emocionada de encontrá-los aqui. Um forte abraço, amigo de minha mãe. Amado por ser tão belo. Mel

    ResponderExcluir