domingo, 5 de maio de 2019

A primeira vez em que eu morri


Entre eu e Liliana, Clarice e Mariana. 
Liliana Baya me visitou. Veio de uma longa viagem, que ela diz, "de amores". Nos conhecemos priscas eras. No início da faculdade. Ela, uma argentina criada na Bolívia. Eu, um maranhense deslocado para o Sul do Brasil. Estávamos em São Leopoldo e, para os outros, éramos uma espécie de animais de laboratório.

Tudo o que se falava nas salas de aula carecia, ao final, de uma opinião nossa. "Como é na Bolívia?" "E como é no nordeste?" Certamente não foi só por isso, mas houve uma contribuição enorme dessa circunstância para que nos aproximássemos e virássemos amigos profundos.

Depois, ela casou e teve duas filhas. A primeira, Tessay, foi meu laboratório de paternidade. Eles eram estudantes de arquitetura e quase não tinham tempo para cuidar de filhos. Eles tinham cálculos na cabeça e quase não dormiam. Nós, estudantes de jornalismo, tínhamos um mundo aberto para as teorias, para a filosofia, para as contradições da vida... Nossa matemática era poética. Nosso cálculo era a paixão.

Tessay cresceu em braços de futuros jornalistas. Viramos compadres. Padrinhos sem exigência de documento. Depois que a segunda filha de Liliana nasceu, Aymé, ela foi embora de vez para a Bolívia. Nossos olhares ficaram mais distantes. Mas nossos corações nunca se afastaram. Ao contrário, o tum-tum-tum do nosso peito bateu sempre mais perto da alma. Apesar de uma Cordilheira dos Andes a nos separar.

Esta semana, Liliana veio me visitar. E rever seus amores daqui, também. Meus pais, Mara, Mariana e Gabriel inclusos. Foi num jantar com Mariana que ela resgatou uma história, que eu havia deixado esquecida em uma dessas gavetas memoriais distantes.

Eram os idos anos 90. Bem no início. Ela saíra de Cochabamba em direção a Sao Paulo. A viagem implicava em uma parada para troca de aeronave em Puerto Soares, na fronteira com o Brasil, bem ao lado de Corumbá. Sentada, esperando que duas horas se passassem sem demora, ela puxa conversa com uma brasileira, que também aguardava o novo voo.
- Eu sou de Campo Grande, disse a mulher.
-Ah, é? Tenho compadres vivendo lá. São jornalistas. Ele, Maranhão Viegas, trabalha na TV Morena, falou Liliana.
- Ah, eu conheço.  Morreu faz pouco tempo! (Disse a mulher para Liliana com ares de quem conta uma novidade velha.)

Minha comadre gelou. E quis tirar a dúvida. Me descreveu. E, a cada traço meu descrito, uma nova confirmação da mulher me sepultava para além dos sete palmos a que todo mortal faz jus.

Liliana entrou em pânico. Pensou na Mara e na sua filha recém nascida. Tão jovem, a comadre. E já viúva! Como poderia criar uma criança assim? Entre um raciocínio triste e um pânico avassalador, decidiu interromper a viagem para São Paulo, atravessar a fronteira, entrar no Brasil por Corumbá e ir até Campo Grande ver a sua comadre. E conhecer os detalhes de minha vida interrompida. Foram seiscentos quilômetros feitos em pé, dentro de um ônibus lotado.

Chegou a Campo Grande perto das duas da madrugada. Desceu numa rodoviária inóspita que, aquela hora, abrigava apenas os bêbados, os perdidos e os incautos. Dirigiu-se ao único boteco aberto e implorou por uma lista telefônica (era assim que se descobriam os endereços das pessoas no início da década de 90, do Século passado). Tudo o que ela sabia era o nome da emissora onde eu trabalhava. Ligou. Foi atendida por um porteiro de plantão.

Uma vez mais, ela implorou aos prantos por ajuda. Explicou que chegara da Bolívia e precisava falar comigo. Milagrosamente o porteiro atendeu ao seu pedido e alcançou-lhe o número do telefone da minha casa. À época, eu era diretor de jornalismo da TV e já não era comum que tais pedidos - endereços, telefones pessoais - fossem dados a estranhos. Mas ela conseguiu. E ligou, desesperada.

Quando um telefone toca às três da manhã é preciso atender. Principalmente se a casa for de um jornalista. Sono interrompido e coração aflito, atendi. Ouvi do outro lado uma voz nervosa, falando meu nome em espanhol. Respondi que, sim, era eu. E percebi a pessoa chorando a ponto de ter uma eclâmpsia do outro lado da linha. Aos prantos ela só consegui dizer, "tu não morreu, compadre!!!!" 

Reconheci a voz de Liliana. Corremos para a Rodoviária para buscá-la e entender melhor o que se passava. Entre choros e risos, conversamos até as cinco da manhã. Ela precisava seguir viagem. Fomos para o aeroporto, compramos uma nova passagem. Antes das seis ela seguiu seu rumo.

Pensando com os termos de hoje, fui uma das primeiras vítimas de "fakenews" à época. Mariana ouviu incrédula essa história, contada de viva voz por minha comadre Liliana, sobre a primeira vez em que eu morri.

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