Querida Ju.
Espero que o seu braço imobilizado não lhe tenha tirado a
alegria dos domingos de sol. Acidentes domésticos são ridículos. Mas eles
também passam.
Acordei pensando que tinha que lhe escrever. Faz tempo que
entrei em um estio de escrita. Desde que começaram as ondas de incerteza, no
final do ano passado. As incertezas seguem por tempo demasiado, em meu
entender. Talvez, por isso, tenha decidido voltar a escrever. Escrever, como
correr, me salva sempre.
Sei que você anda evitando os jornais. É justo e são. As
notícias não são boas. Aliás, manchetes alarmantes e notícias desconfortantes
são o paradigma do jornalismo. A escola nos ensina isso. É papel do jornalismo
tocar no desconforto e partilhá-lo conosco. Não é vício. É necessidade. Embora,
para tudo haja medida. E em certa medida, o seu cansaço de notícias ruins é
também o de muita gente (eu incluso). É o tempo. O que estamos vivendo agora é
ridículo. Mas o tempo também passa.
Na sexta fui ao cinema. Capharnaum era o filme. Um drama
árabe-libanês, filmado por uma jovem diretora libanesa, Nadine Labaki, que
ganhou a Palma de ouro em Cannes 2018. Não sem razão. A história de Zain, um
menino de doze anos, que sobrevive em um mundo de pobreza e guerra é um soco
poético no estômago.
Se for assistir, prepare-se. A direção é boa, a história é
boa e comovente. Boa parte do filme eu me peguei perguntando em silêncio: Será
que eu consigo chegar ao final? E toda vez que isso acontecia, a história
aplicava a dose de poesia necessária para seguir por mais um trecho. Várias,
muitas vezes isso se repetiu nas duas horas e pouco do filme. Até a catarse
final.
Zain é um menino que cuida de muitos irmãos mais novos. É
consciência e crítica de uma família desajustada. É criança e é adulto. É
poesia e tragédia. Sua história é a mesma de muitos filhos da guerra e da
miséria humana. E sendo assim, ele passeia com desenvoltura num universo
marcado pela dor e pela violência, pelo amor e pela separação, pela esperança e
pela falta de horizonte. É um filme maiúsculo. Trate de ver.
Ontem, fiz mais um plantão na TV. Por lá também o tempo é de
incerteza. Ninguém é capaz de prever com clareza o que acontecerá. Mas algo vai
acontecer. A fórmula para seguir? Vou fazendo o que deve ser feito. Da melhor
forma possível. Por força do trabalho, mais do que por vontade própria, leio as
manchetes e mergulho nas notícias. Sou um dos que as fazem, por força do
ofício.
No México, pessoas morrem vítimas de uma explosão de um duto
vazado de combustível. Elas estavam roubando combustível. Muitas estavam com as
roupas encharcadas de gasolina. Não se sabe ao certo o que provocou a explosão.
Mas era uma tragédia anunciada.
Nos Estados Unidos, Trump faz uma proposta indecorosa. Acena
com um alento provisório aos chamados “dreamers”, mas pede em troca o dinheiro
para construir o famigerado muro na fronteira com o México. Os contrários a ele
já disseram que a proposta é uma piada de mau gosto. E tudo indica que a queda
de braço entre ele e o resto da turma vai continuar. É o que dá, colocar um
menino birrento na presidência de um país. Lembro de uma canção do Chico que
fala sobre mirar-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas. Mais pela rima do
que pelo sentido literal. Mas sei que é tarde, é muito tarde, para que nos
miremos no exemplo daqueles senhores do Norte.
Comecei a ler o terceiro livro do Yuval Harari. “21 lições
para o Século 21”. Logo nas primeiras páginas ele nos faz pensar em algo que
não costumamos. O tempo das narrativas. O cálculo dele é preciso. De trinta em
trinta anos, desde o Século passado, a começar por 1938, as elites do mundo nos
oferecem narrativas que servem de referência para tocar a vida no mundo
civilizado (ou, nem tanto assim). Lá atrás, eram três – A fascista, a comunista
e a liberal. Em 68, sobraram duas, a Comunista e a Liberal. Em 98, ficamos com
apenas uma – a liberal. E agora vivemos a ausência de qualquer narrativa que
nos aponte um caminho. E com isso, abrimos espaço para a velha ordem mundial. É
como se inaugurássemos o passado, outra vez. Com cercas, muros, nacionalismos,
preconceitos e pobreza de espírito. O tempo, nestas condições, é ridículo. Mas
ele também passa.
Marcelo Yuka morreu. Ele era um pouco de tudo. Poeta,
letrista, músico, ativista social... Era, principalmente, um camarada em
ebulição constante. Tanto que nem as balas que o atingiram 18 anos atrás, lhe
tiraram o tesão por viver. Enquanto esteve por aqui, fez coisas preciosas. O
álbum Rappa Mundi entre elas. Pescador de ilusões, outra.
Um sujeito que vai fazer falta. Nas imagens que os jornais
mostraram do velório dele, se destaca a presença de outro visionário dessa
geração de artistas, Marcelo D2.
Dias destes vi na TV alguns dos programas de entrevista que
o Gil gravou para o Canal Brasil. Gil não é entrevistador. É poeta, é cantor.
Não é entrevistador. Isso faz dos programas muito mais uma conversa do que uma
entrevista. O que não é ruim. Há momentos em que a presença de Gil é mais forte
que seus convidados. Ele sempre começa cantando e tocando uma música. É um
momento de deleite e de reverência. Lázaro Ramos chora de emoção. Caetano é
cumplice. Dráuzio Varela enternece. Fernanda Torres trava com Gil um diálogo
utópico. É das melhores conversas que vi. Veja, quando puder.
O domingo bate à minha janela. Lá fora faz sol. É hora de
tomar a dose diária de vitamina D. Recupere-se logo. Enquanto isso, sobreviva
às coisas ridículas da vida.
E se aproveite delas. Um beijo. Inorbel.
Juliana Daibert era só uma menina em 1979, quando nos conhecemos. Na foto, ao lado da sua mãe, Marilene, na noite em que eu celebrava o fim do ensino médio. |
A jornalista, hoje. |
Brasília, 20.01.2019
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