domingo, 20 de janeiro de 2019

Correspondências 2019 - Carta para Juliana Daibert

Querida Ju.



Espero que o seu braço imobilizado não lhe tenha tirado a alegria dos domingos de sol. Acidentes domésticos são ridículos. Mas eles também passam.

Acordei pensando que tinha que lhe escrever. Faz tempo que entrei em um estio de escrita. Desde que começaram as ondas de incerteza, no final do ano passado. As incertezas seguem por tempo demasiado, em meu entender. Talvez, por isso, tenha decidido voltar a escrever. Escrever, como correr, me salva sempre.

Sei que você anda evitando os jornais. É justo e são. As notícias não são boas. Aliás, manchetes alarmantes e notícias desconfortantes são o paradigma do jornalismo. A escola nos ensina isso. É papel do jornalismo tocar no desconforto e partilhá-lo conosco. Não é vício. É necessidade. Embora, para tudo haja medida. E em certa medida, o seu cansaço de notícias ruins é também o de muita gente (eu incluso). É o tempo. O que estamos vivendo agora é ridículo. Mas o tempo também passa.

Na sexta fui ao cinema. Capharnaum era o filme. Um drama árabe-libanês, filmado por uma jovem diretora libanesa, Nadine Labaki, que ganhou a Palma de ouro em Cannes 2018. Não sem razão. A história de Zain, um menino de doze anos, que sobrevive em um mundo de pobreza e guerra é um soco poético no estômago.

Se for assistir, prepare-se. A direção é boa, a história é boa e comovente. Boa parte do filme eu me peguei perguntando em silêncio: Será que eu consigo chegar ao final? E toda vez que isso acontecia, a história aplicava a dose de poesia necessária para seguir por mais um trecho. Várias, muitas vezes isso se repetiu nas duas horas e pouco do filme. Até a catarse final.

Zain é um menino que cuida de muitos irmãos mais novos. É consciência e crítica de uma família desajustada. É criança e é adulto. É poesia e tragédia. Sua história é a mesma de muitos filhos da guerra e da miséria humana. E sendo assim, ele passeia com desenvoltura num universo marcado pela dor e pela violência, pelo amor e pela separação, pela esperança e pela falta de horizonte. É um filme maiúsculo. Trate de ver.

Ontem, fiz mais um plantão na TV. Por lá também o tempo é de incerteza. Ninguém é capaz de prever com clareza o que acontecerá. Mas algo vai acontecer. A fórmula para seguir? Vou fazendo o que deve ser feito. Da melhor forma possível. Por força do trabalho, mais do que por vontade própria, leio as manchetes e mergulho nas notícias. Sou um dos que as fazem, por força do ofício.

No México, pessoas morrem vítimas de uma explosão de um duto vazado de combustível. Elas estavam roubando combustível. Muitas estavam com as roupas encharcadas de gasolina. Não se sabe ao certo o que provocou a explosão. Mas era uma tragédia anunciada.

Nos Estados Unidos, Trump faz uma proposta indecorosa. Acena com um alento provisório aos chamados “dreamers”, mas pede em troca o dinheiro para construir o famigerado muro na fronteira com o México. Os contrários a ele já disseram que a proposta é uma piada de mau gosto. E tudo indica que a queda de braço entre ele e o resto da turma vai continuar. É o que dá, colocar um menino birrento na presidência de um país. Lembro de uma canção do Chico que fala sobre mirar-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas. Mais pela rima do que pelo sentido literal. Mas sei que é tarde, é muito tarde, para que nos miremos no exemplo daqueles senhores do Norte.

Comecei a ler o terceiro livro do Yuval Harari. “21 lições para o Século 21”. Logo nas primeiras páginas ele nos faz pensar em algo que não costumamos. O tempo das narrativas. O cálculo dele é preciso. De trinta em trinta anos, desde o Século passado, a começar por 1938, as elites do mundo nos oferecem narrativas que servem de referência para tocar a vida no mundo civilizado (ou, nem tanto assim). Lá atrás, eram três – A fascista, a comunista e a liberal. Em 68, sobraram duas, a Comunista e a Liberal. Em 98, ficamos com apenas uma – a liberal. E agora vivemos a ausência de qualquer narrativa que nos aponte um caminho. E com isso, abrimos espaço para a velha ordem mundial. É como se inaugurássemos o passado, outra vez. Com cercas, muros, nacionalismos, preconceitos e pobreza de espírito. O tempo, nestas condições, é ridículo. Mas ele também passa.

Marcelo Yuka morreu. Ele era um pouco de tudo. Poeta, letrista, músico, ativista social... Era, principalmente, um camarada em ebulição constante. Tanto que nem as balas que o atingiram 18 anos atrás, lhe tiraram o tesão por viver. Enquanto esteve por aqui, fez coisas preciosas. O álbum Rappa Mundi entre elas. Pescador de ilusões, outra.

Um sujeito que vai fazer falta. Nas imagens que os jornais mostraram do velório dele, se destaca a presença de outro visionário dessa geração de artistas, Marcelo D2.

Dias destes vi na TV alguns dos programas de entrevista que o Gil gravou para o Canal Brasil. Gil não é entrevistador. É poeta, é cantor. Não é entrevistador. Isso faz dos programas muito mais uma conversa do que uma entrevista. O que não é ruim. Há momentos em que a presença de Gil é mais forte que seus convidados. Ele sempre começa cantando e tocando uma música. É um momento de deleite e de reverência. Lázaro Ramos chora de emoção. Caetano é cumplice. Dráuzio Varela enternece. Fernanda Torres trava com Gil um diálogo utópico. É das melhores conversas que vi. Veja, quando puder.

O domingo bate à minha janela. Lá fora faz sol. É hora de tomar a dose diária de vitamina D. Recupere-se logo. Enquanto isso, sobreviva às coisas ridículas da vida.
E se aproveite delas. Um beijo. Inorbel.   


Juliana Daibert era só uma menina em 1979, quando nos conhecemos.
Na foto, ao lado da sua mãe, Marilene, na noite em que eu celebrava o fim
do ensino médio. 
A jornalista, hoje.


Brasília, 20.01.2019

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