Liège morreu aos 16 anos.
Conhecemo-nos assim: ela deixou algo escrito na carteira do colégio e respondi.
Tornamo-nos amigos virtuais numa época sem smartphones e o laminado verde da
carteira sendo nossa tábula. (Nesse colégio, as turmas iam até os professores e
isso explica usarmos a mesma carteira em horários distintos.) Ficamos amigos
numa época em que uma criança de 16 anos imagina saber tudo sobre o mundo,
a vida, as estrelas e o pó.
Certo dia nos apresentaram: não
sabia que era uma menina, não sabia que tinha nome de vilarejo belga, não sabia
que era negra num colégio de brancos (então, éramos exceção), não sabia que
tinha morado na China e que por isso usava um ki-fu preto com forro verde (que
ela chamava “perereca”)...
Liège tinha tudo para ser minha
amiga, pois era parte do grupo de párias que qualquer colégio tem. Éramos os
negros, os católicos, os feios, os pobres, os orientais, os gays, os
inteligentes, atributos esses isolados ou justapostos. Um lia Dante, o outro
conhecia Dürer e tentava imitá-lo, certa menina fazia cálculos imensos em
segundos, “de cabeça”, uma outra se vestia como na geração flower power...
Entre o Natal e o Ano Novo de
1983, soube que minha amiga do ki-fu preto não estava mais entre nós, pois os
deuses haviam-na levado, como já o tinham feito com outros jovens sensacionais,
invejosos de sua própria criação.
Creio que envelhecemos com esses
mortos, e que somos um pouco deles. Deixe Hegel, Levinas, Bakhtin, seja quem
for que tenha falado sobre o outro, um só momento! Alimentamo-nos da imagem
deles e ficamos pensando como a vida seria com a presença deles. Copiamos seus
modos, carregamos conosco seus fardos e seus desejos, lembramos de seu sorriso
como estivessem vivos (e Liège tinha um sorriso do tamanho do colégio, farto e
ensolarado, um sorriso intercontinental, inter-racial, intergêneros).
De todo modo, eu envelheci e Liège
não. Vivo um sentimento díspare em relação à minha amiga morta. Eu não pude ir
ao seu enterro, não joguei três punhados de terra em seu túmulo, não chorei na
câmara ardente. Hoje, menina, Liège sorri ao meu lado, para um velho. E eu me
recuso a matá-la de novo. Gosto dela, assim, presença viva.
Dia de lembrar de Liège: seja num
altar xintoísta (como ela ia gostar disso!), seja indo ao cemitério e fazer um
banquete à mexicana, seja indo debulhar um terço e chorar à brasileira,
caminhando entre rios de cera derretida, fugindo da chuva, seja indo ver o mar
e pensar como é ele grande e profundo, como vai e como vem, como está em todo
lugar físico da Terra, essas bobagens que pensamos meio enebriados pelos seus
mistérios.
*Benedito Costa - É um novo/velho amigo que conheci virtualmente, provocado
pelas palavras (sinceras e exatas) do Dary Junior. Este último, um companheiro
de tempos atrás, do jornalismo e dos pantanais. Obrigado, Dary, pela oportunidade
de conhecer Benedito e suas linhas. Benedito, seja bem-vindo e sinta-se em casa.
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