quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O mar e a arquitetura

São Luis, da minha infância desbravadora. 
Eu tinha pouco mais de sete anos. Tempo em que as ruas eram enormes, os prédios gigantes e os espaços adultos eram vistos de baixo pra cima, pela perspectiva de uma criança.

Mesmo nestes tempos, eu era desbravador. Ía aos Correios levar cartas a pedido de minha mãe. Ía à  padaria do "seu" Mário, no Morro do Querosene, comprar pão massa fina e cem gramas de manteiga, vendidas e embaladas em papel manteiga. Tempos de bondes, galos e quintais.

O bonde no cruzamento da Rua da Paz
Em frente à minha casa, no bairro da Madre Deus, atravessando a Avenida Rui Barbosa, havia a quitanda do "seu" Antônio, pai do meu amigo Junior Carajás, onde eu comprava azeite, banha de porco, camarão, arroz. Coisas que minha avó Antonieta precisava para fazer o almoço.

Fazia tudo isso com a desenvoltura de quem achava que era dono do mundo. Daquele mundo, pelo menos.

Um dia, meu pai ficou doente e "baixou" o hospital - era como se dizia das pessoas que precisavam ficar internadas. Fiquei com meus avós, em casa. Mas havia que fazer as tarefas da escola e a ideia, depois de alguns dias, era que eu tomasse um ônibus e chegasse ao hospital, sozinho. Ora, quem ía ao correio e circulava nas quitandas e padarias, haveria de dar conta de chegar sozinho ao hospital.

Meu avô, meu maior incentivador de novas aventuras, me levou ao Largo do Cemitério, ponto de partida dos ônibus, e me pôs num deles. Meu coração batia mais acelerado do que o normal. Quase ao ponto de sair pela boca. Mas, lá fui.

Já nesse período, os novos ônibus anunciavam tempos modernos.  Eram mais velozes e confortáveis, tinham portas sanfonadas e, eu, nenhuma experiência com ônibus. De saída, ao fechar-se, a porta imprensou minha cabeça. Minhas orelhas ardiam. Foi o primeiro susto. O primeiro constrangimento. As pessoas, no ônibus, comoveram-se ao perceber a minha falta de experiência. Aquele "toco" de gente querendo "ser algo". Dois dos passageiros me ofereceram um lugar entre eles. Aceitei. E perdi a noção do tempo e do espaço.

Sentado entre dois adultos, não havia visão possível para o lado de fora do ônibus. Não havia referência de onde poderia estar. Mais do que isso, não tinha noção de onde deveria descer. O fato é que o Hospital Português, onde meu pai estava internado, passou. A parada onde eu deveria descer, se foi.

Desci onde achei mais familiar, depois de me dar conta de que havia perdido o ponto certo. Um local conhecido como Ferro de Engomar. O nome era uma referência ao formato triangular do prédio e à bifurcação formada pelas ruas que o rodeavam.

Foi por conta desse local que comecei a lembrar dessa história, tantos anos depois. Vi uma foto no Blog  da Teresa, Rua dos Dias que Voam, e a imagem me levou de volta àquela parada de ônibus do Ferro de Engomar, lá em São Luis do Maranhão.

A mesma formação arquitetônica, a mesma emoção e, certamente, lá por trás dele o mesmo mar.

Naquele dia, em minha infância desbravadora, andei muito, dei muitas voltas.  Errei caminhos, segui pessoas erradas, quase me desesperei. Ao fim do dia, cheguei ao hospital em que meu pai estava internado. Bati à porta do quarto. Minha mãe abriu. E eu, sem dizer palavra sequer, me pus a chorar. Minha mãe me abraçou. Todo o meu medo havia sido vencido. Todo o meu temor de estar perdido, superado. Diante da visão de minha mãe e meu pai... Desabei.  Aquela emoção, isso não havia como descrever. Nem todo mar. Nem toda arquitetura.

Café Buenos Aires - Lisboa. 


Ferro de Engomar, em São Luis - MA.


2 comentários:

  1. Bela crônica, Maranhão. A visão que as crianças têm das coisas é fantástica. A primeira vez que vim a Brasília, com a mãe da empregada lá de casa, era criança. Chegamos de noite e, no momento em que o ônibus passava por uma via (hoje eu sei, era o Eixão), fiquei olhando os carros lá embaixo, nas tesourinhas, e pensei: como é que cabe uma pessoa ali dentro?
    Parabéns.

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  2. Valeu, Zézão! O passado é o que nos dá dimensão ao presente. Grande abraço, bom feriado.

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