domingo, 17 de janeiro de 2010

Poesia não envelhece

Foi em 1991. O desafio era entrevistar o poeta Manoel de Barros para a primeira revista científica da UNIDERP - Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal. Obter dele algo que ligasse a poesia à pesquisa e ao trabalho que a Universidade pretendia fazer no Pantanal. O convite veio da professora Yara Penteado e do professor Paulo Cabral. A Revista se chamaria ONATI. Topei na hora. Fiz a lista de perguntas e mandei pro Manoel. Quase 20 anos depois, relendo o que ele escreveu, constato - poesia não envelhece. Por isso, faço questão de abrir este novo trabalho resgatando um pouco da conversa com Manoel de Barros (na foto ao lado, feita por Orlando Brito). Pelo jornalismo e pela poesia. Boa leitura.

O peso das contradições do Brasil lhe pesa também sobre a poesia?
Manoel de Barros - Não pesam as contradições do Brasil porque, na verdade a gente, eu, tenho muito mais contradições do que o Brasil. Eu ganho do Brasil de 10 a zero. Acho que a gente é poeta por isso mesmo: que precisa resolver as suas contradições. E porque não as resolve, graças a Deus. Eu não resolvo essa briga dentro de mim senão com palavras. E há uma figura de estilo que concilia muito a gente por dentro. Se trata da antítese. A gente produz uma frase antitética e fica feliz. Parece que a frase nos harmoniza. Assim como esta, por exemplo: Só as coisas rasteiras me celestam.

Na revolução da informação que vivemos neste fim de Século (a conversa foi no fim do Século XX), a composição da poesia também se altera?
Manoel de Barros - Sabe, Maranhão, eu tenho um mundinho bem reduzido. Tentei algum tempo alargar esse mundo lendo os filósofos, pensadores, romancistas, poetas de todos os lugares e tempos. Vi pinturas, esculturas, vitrais, pessoas, países, ruinas, aldeias, costumes, ternuras, desgraças. Andei por estradas modernas e por trilheiros. E vi, como diz o Eclesiaste, que tudo é vaidade e vento. Isto seja: que tudo é igual e vai pro pó. Não me impressiono com as tecnologias. Pra mim, elas acrescentam algumas palavras novas, que ainda não aceito em meus poemas. Não aceito porque essas palavras ainda não entraram no meu sangue. Componho como compunha: a lápis e usando um velho dicionário português dos eremitas calçados de 1870. E as minhas percepções sensoriais.

Que características deve ter uma instituição que deseje compreender, absorver e transmitir as particularidades que compõem o Pantanal?
Manoel de Barros - Existe, ao que sei, a SODEPAN, que é uma entidade criada para a preservação do Pantanal. Há uma agressão ao pantanal que entra através de suas águas. Nisso vejo o maior perigo. Mercúrio de garimpeiros, sujidades e venenos de indústrias. Agrotóxicos. Coureiros. Desmatamentos sem controle, são os maiores perigos. Penso que a SODEPAN trata disso. Mas aquele universo é principalmente preservado virgem pelo instinto do seu povo. É uma gente tão pregada às suas árvores, às suas chuvas, aos seus cavalos, às susa areias e aos seus ventos que qualquer arranhão a essas coisas arranha seus habitantes. Daí que eles andam em guarda, feito os quero-queros que defendem seus ninhos na beira dos corixos.

A Aldeia Global nos permite estar hoje na África do Sul ou no Pantanal do Nabileque , com uma pequena diferença de fração de segundos. Há risco nessa evolução? Voltar os olhos para o regional significa resguardar a identidade pantaneira?
Manoel de Barros - Não há como evitar as aldeias globais e seus efeitos. Elas invadem e destemperam quase tudo. Mas o pantanalem seu todo, em sua ossatura geológica está resgaurdado. Ou quase. O fato de seruma região de enchentes periódicas, isso preserva um pouco o pantanal. Ninguém se estabelece com indústrias ou supermercados no pantanal. Porque em seis meses as águas lhes comem pelas beiradas. E tudo bóia. E tudo nada. Aquilo é celeiro de bichos e aves e não de cofres bancários. Com a paz dos bichos vive a paz do homem pantaneiro. E viverá enquanto a natureza não modificar a sua ossatura geológica.

Alguma vez lhe passou pela cabeça criar um "dicionário da natureza"?
Manoel de Barros - Você pode não acreditar, mas eu não me emociono com a natureza como ela é. Suas águas, seus bichos, sua vegetação. Até tenho um certo fastio da natureza. Igual Mackbeth falava: Tenho um certo fastio do sol. Talvez a gente queira fazer um sol verde, um homem que voe como as noivas de Chagal, uma cavalo azul e de asas. É evidente que eu, tendo sido criado no pantanal, tenha em mim um lastro de brejos e de conchas. Tenho um sentido de abandono em mim. Um sentimento de lonjuras, de distâncias, de lugares sem dono. Venho daqueles tempos em que o pantanal era o ermo. Fui criado naqueles ermos. Por isso tenho em mim um sentimento de abandono. Na minha meninice chegavam apenas carros de bois, de três em três meses no lugar em que morávamos. De forma que essa angústia de estar em lugar distante e perdido, me acompanha até hoje. Não me seduz ver as paisagens do pantanal porque elas estão dentro de mim. O que preciso é transfazê-las.

Você parece ter feito uma opção por manter-se à margem. Do sistema, da mediocridade, da excentricidade. Você se sente violentado nesses tempos de invasão e de quebra de privacidade?
Manoel de Barros - Existe uma lenda de que eu tenha feito opção para viver à margem. E às margens. Mas, na verdade, eu nunca fiz essa opção e a coisa é lenda mesmo. O que eu sou, sem dúvida, é um tímido incurável. Sofro para atravessar um salão cheio de gente. Sofro em solenidades. Ando sobre pregos se tenho que conversar com senhores conspícuos. Até para entrar em salão de barbeiro, se o salão está cheio de gente, eu sofro. Escolho sempre aqueles velhos salõezinhos de uma só cadeira. Aí fico amigo do barbeiro e nos anedotamos. Daí, por não gostar de sofrer, fui me afastando dos convescotes, das vernissages, dos inauguramentos, dos sodalicios. Prefiro os lupanares do que os sadalícios. Vivo bem nas tocas. A gente acaba descobrindo que no fechado o imaginário voa mais longe.

Mesmo sem sair do Mato Grosso do Sul, sem cortar o contato com a sua terra, o seu olhar tem sabor do universal. Que energia é essa que te alimenta a poesia?
Manoel de Barros - Os olhos enxergam melhor as coisas do nosso pequeno mundo particular. Aqui ou em Paris os quintais têm as mesmas coisas: folhas secas, cacos de vidro, formigas, bosta de rato, baratas cascudas. Passei algumas horas no quintal de Rodin. Eu estava curioso para ver se os passarinhos de lá tinham duas pernas também, como os daqui. Saí confiante que tinham. Então acertei as pequenas coisas que meus olhos viam na minha terra, na minha cidade, no meu terreiro - eram quase que as mesmas que eu vira no quintal de Rodin. E sei bem que só um milagre estético pode tornar tudo isso universal. O que faz do particular uma coisa universal é o tratamento estético que possamos dar a esse particular de cada um de nós.

Gilberto Gil diz em uma de suas canções que "no sonho do poeta nada falta". Com quê o poeta sonha?
Manoel de Barros - Eu fantasio completo. Eu fantasio mulheres, viagens , vulva, pevide, inocências. Queri ter agora um olho de criança para ver o mundo pela primeira vez. (Meu olho está tão gasto!) Eu ía dar nome às coisas. Cobra eu chamaria de flor que anda. Nuvem eu chamaria de sol, etc. etc. Eu daria movimento às pedras. Faria árvore pensar. Tudo o que eu tocasse teria um canto, uma cor, um amor. A solidão teria que existir para que a alma funcionasse e se abrisse em sonhos. Eu sonho tudo. Eu queria saber misturar melhor as palavras a ponto que eu fosse mais poeta.

8 comentários:

  1. Uma grande dupla. Maranhão e Manoel. Um jornalista top e um poeta top top. Poesia alimentando a alma do ser humano e do ser não tão humano assim. Um abraço e sucesso.

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  2. Fico pensando o que é ser "moderno"...
    Todos aqueles que buscam esse clichê estão sempre ultrapassados, o hoje já virou ontem prá quem tem pressa.
    Lendo essas coisas, palavras que sopram e por soprarem vão para todo lugar e a qualquer tempo, vejo que ser moderno é isso.

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  3. Palavras do texto de Manoel de Barros que me tocaram e fizeram refletir sobre a individualidade e sua relação com o universal: " O que faz do particular uma coisa universal é o tratamento estético que possamos dar a esse particular de cada um de nós."
    Obrigada Maranhão, meu amigo querido, pela oportunidade de reflexão. Um beijo e sucesso.
    Jane Resina

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  4. Parabéns Maranhão! Que grata surpresa encontrar Manoel de Barros no seu Blog.. Bela entrevista!! A semana começando bem! Abração.

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  5. Maranhão, amigo,poeta,jornalista,compositor e el Consul das palavras.
    Vou ler tudo com muita calma, pois sei que aqui term coisas boas.
    Abração
    Marcos Mendes

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  6. Gostei do blog, amigo. E ainda com o poeta maravilhoso... As respostas dele na entrevista é pura poesia! Já postei o blog no twitter @propagandams . Estamos acompanhando. Sucesso.
    Amauri

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  7. Maranhão, ainda hoje falamos de você, eu e Tino Gomes. Grande abraço e parabéns pela iniciativa fadada ao sucesso.

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  8. Nó...sssinhora!!! Que alimento bom esse que vem da sensibilidade nas palavras...!!! Que coisa boa, que arrepia. Obrigada por compartilhar, querido amigo! Beijo nesse coração bom, de palavras.

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