Por Cris Guerra*
Acordo lado a lado com minha dor de cabeça. Visto-me com pressa,
pensamento fixo no café que me espera pertinho do escritório. Minha ilusão me
diz que a dor se irá com ele.
Chego à minha sala, abro as janelas, ligo o computador e desço
para a primeira xícara do dia. A cada gole, um “penso”. Amargos e saborosos
segundos de meditação. Quero escrever sobre isso, me diz minha certeza. Que
café é como paixão: vicia e deixa um gosto amargo no final. É preciso um copo
de água gelada, como quem lava o rosto para acordar e prosseguir. Era assim que
minha mãe gostava: uma xícara de um, um copo da outra. Já meu pai preferia
alongar o gosto amargo. Cafés povoavam a rotina dos dois: em tempos de garrafa
térmica, com a bebida já adoçada, eles se encontravam nas xícaras – e ali
dissolviam suas diferenças. Café para contar uma novidade. Para degustar um
problema. Café quando não houvesse nada a dizer. Os goles pontuavam o silêncio.
(Café era o segredo deles.)
Segredo – ou vício – que me tomou de assalto depois dos 40. Acabo
de descobrir: Por causa desse desencontro, não houve tempo para sequer uma
xícara jogando conversa fora com meus pais.
Volto para a sala e para meus e-mails – descafeinados ou
extrafortes. Antes de sair para o almoço, um novo café para não dormir (e um gole
de culpa, temperado pelo medo da cafeína). Não durmo, mas sonho: com uma
desordem generosa de tempos que me trouxesse cinco minutos de café com eles. Eu
toleraria até mesmo a garrafa térmica, em nome de requentar esse amor que nunca
esfriou.
Algumas xícaras depois, estou em casa, diante de uma tela em
branco. Aqui não se toma café.
Ouço vozes no quarto grande. Conversam como dois adultos,
enquanto eu busco palavras onde elas não habitam. Meus ouvidos se distraem como
quem passeia num mercado de cores. E me deixam sozinha na sala para espiar a
conversa dos dois homens-meninos. Entre um pequeno diálogo e outro, contam-me
os meus ouvidos: risadas e cócegas, gritos e o som de um corpo magrinho caindo
na cama – um arremessa, o outro voa feliz. Logo outro voo recomeça e com ele
mais risadas, comentários e códigos particulares. São dois meninos brincando.
Em um dado momento, já não sei do que estão falando. Excluída do
papo entre pai e filho, comemoro invisível o presente que representam um para o
outro.
Esses dois, aqueles dois. Entre ontem e hoje, café.
A chuva fina lá fora faz a casa mais macia: meu lugar preferido
é o edredom. Levo o notebook e o pequeno, que adormece antes de escovar os
dentes. O pai joga videogame na sala, com a energia de moleque que lhe resta
insone.
Durmo de madura e acordo pensando em café. As tardes passam
voando e minhas ideias dormem há dias.
*Cris Guerra é uma amiga virtual (dessas que parecem ser de infância), lá de BH. É mãe de Francisco e está casada com Edmundo. Publicitária, blogueira reconhecida, modista respeitada (tudo o que suas mãos tocam, vira moda), escritora e hábil tradutora das coisas cotidianas. Uma cronista de mão cheia, da terra que já nos deu tantos outros. Cris fala do seu quintal, como se falasse do universo. E o universo todo parece caber bem dentro do seu quintal. Esse texto, em que ela fala de café, mas bem poderia estar falando de vinho, foi publicado originalmente na coluna assinada por ela, em Veja BH.
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