Só dez por cento...
A inventar... |
Almoço de domingo lá em casa. Vinho e conversa boa com meu pai e minha mãe. A memória corre solta. Conto que encontrei Lenita Estrela de Sá na internet. É lá que descubro que ela é um ano mais nova que eu. Por isso, minha memória é tão escassa daquele tempo. Por isso não sei tanto e tenho quer recorrer à memória oral de meus pais.
Me falam dos pais dela e dos irmãos. Me falam da efervescência da produção cultural naqueles tempos. Aliás, acho que a Madre Deus já nasceu fervendo. E, inevitável, vem as histórias que são quase lenda, sobre personagens reais e seus feitos.
Hoje, cabe a primeira das histórias, da série que eu vou batizar de "Memórias da Madre Deus". Com a devida licença poética, que me isenta de fidelidade aos fatos reais. Como diria Manoel de Barros, em sua desbiografia, só dez por cento é mentira. O resto tudo é inventado.
A fama em um instante
Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo. |
Havia vinte anos ele cumpria aquela função – puxar as cordas
que abriam as cortinas do palco para o início do espetáculo. Suas mãos
conheciam aquelas cordas grossas como poucos. De tanto assistir, da coxia, ele
desenvolvera uma incrível técnica de memorização e sabia de cor e salteado os
textos de cada um dos personagens. Principalmente os da Paixão de Cristo.
No palco, seus amigos de bairro assumiam personalidades
quase divinas e emocionavam a plateia em cada ato. Filu pintor tinha a cara chupada, uma magreza convincente e barba e
cabelos compridos. Era um Cristo incontestável.
Zé Santana era
Caifás; Juvenal de Castro era Anaís;
Wilson fazia um Pilatos de dar
inveja. Até Agripino, filho de Totó Bucheiro, era um Judas reconhecido
e odiado.
Só ele, Zé Garapé,
não conseguia espaço e reconhecimento. Não passava de um “puxador de pano”. Tá certo, havia o domínio de uma técnica. Abrir e fechar a cortina na hora certa não
era ofício para qualquer um, exigia habilidade e conhecimento. Era quase como
fazer certa a pontuação gramatical no fim da frase. Mas, por mais que fizesse,
era um ofício menor e o Zé se angustiava, diante daquele universo ficcional que
ele jamais alcançara.
De tanto refletir, um dia, mandou às favas a timidez. Decidiu
que queria ser artista a qualquer custo. Estar no palco, extravasar as emoções
guardadas e decoradas em duas décadas de recolhimento silencioso e
imperceptível. Era isso. E só dependia dele.
Criou coragem e foi ter com Cecílio, diretor da peça. Queria ser mais, queria a ribalta, as
luzes e o estrelato. O diretor, com seu espírito moleque, ouviu atentamente o
pedido. E, abusando da intimidade – dessas
em que a gente perde o amigo mas não perde a piada – respondeu-lhe que na Paixão de Cristo não havia lugar para São
Benedito (uma referência chistosa à cor negra do Zé Garapé).
Boca de cena do Teatro Arthur Azevedo, em São Luis. |
Fato é que a insistência do Zé foi tão grande que Cecílio
terminou cedendo e lhe deu de presente um personagem
especial. A partir do próximo espetáculo seria “Cruz Diabo”. Uma figura
malévola, coberta por uma capa preta e vermelha. Deveria entrar em cena no
exato momento em que Judas agonizava na forca. Iria abraçá-lo e, simbolicamente, levá-lo para o
inferno, sem dizer uma palavra sequer.
Zé Garapé achava que podia mais, mas estava contente. No dia
da estreia, teatro cheio, Zé viu o seu substituto repetir o gesto que lhe
custou uma vida inteira de anonimato. Abre-se a cortina e o espetáculo começa.
Zé pensativo, se dá conta de que não poderia perder a oportunidade para mostrar
o que sabia. Decide em silêncio dar mais veracidade e incrementar o papel de Cruz Diabo.
Hora de entrar em cena. Judas começa a estrebuchar na forca.
Silêncio e tensão no palco. Aflição na plateia. Eis que surge Zé Garapé na
figura do mal. Ao invés de cumprir o combinado, ele salta sobre a plateia. Uma
vez, duas, outra mais, variando de um lado para o outro do palco. Lançando um
grunido arrepiante e fazendo uma careta assustadora. E Judas lá, estrebuchando.
Cecílio angustiado, gritava e gesticulava: Zé! Zé! E nada do Zé prestar atenção. Assusta uns, provoca risos em outros. Na
terceira investida já tinha conquistado definitivamente o público. Enfim,
vira-se para Judas e o encobre com seu manto assustador. Aplausos em aberto,
gritos e assobios.
Para Lenita Estrela de Sá - em memória de nossa infância distante.
Sensacional, os 10% e o inventado.
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