*Por Luca Maribondo
Na
minha opinião, depois que alguém é alfabetizado — ou passa pelo letramento, como
dizem as autoridades educacionais mais modernamente — não mais pode retornar à
condição de analfabeto. Mas depois que me mudei pra Bali, descobri que não é
bem assim. Quando você se muda pra um país de língua completamente diferente da
sua, você volta à condição de analfabeto, ao menos parcialmente.
Por
definição, analfabeto é quem ou aquele que desconhece o alfabeto, ou não conhece
nem o alfa nem o beta, isto é, não sabe nem ler nem escrever, ou quem não tem
instrução primária. Por extensão, o cidadão que é muito ignorante, bronco, de
raciocínio difícil. Analfabeto é o sujeito que pratica o analfabetismo: estado
ou condição de analfabeto; falta de instrução, sobretudo da elementar (ou seja,
ler e escrever).
Faço
toda essa digressão em torno de letrados e iletrados porque agora me sinto como
um analfabeto. Percebi minha situação na primeira vez em que fui a um
restaurante — o que aconteceu na mesma noite em que cheguei, em 18 de dezembro
de 2012. Alguém me ofereceu um nasi goreng. Devo ter olhado para o
pelayan (garçon) com cara de idiota; ele logo se dispôs a me explicar o que é o
tal nasi goreng: arroz frito com legumes, peixes, lula e outros frutos do mar,
às vezes com um ou dois ovos fritos em cima.
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Nasi Goreng |
Foi
a primeira vez que me assaltou a questão do analfabetismo. De como a gente se
sente impotente diante das coisas mais prosaicas da vida: fazer compras num
supermercado, colocar gasolina no carro, fazer uma consulta médica e outras
ações que fazem parte do cotidiano de qualquer pessoa. Foi pensando nisso que
comecei a tentar aprender a língua. E logo descobri algo mais assustador ainda:
existem duas línguas básicas, o bahasa indonésio e o idioma nativo de Bali.
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Alfabeto Balinês |
Também
descobri uma coisa bem curiosa. Comecei a anotar palavras que são muito
semelhantes ao português (algumas são exatamente iguais): fase, festa, final,
foto, gás, gitar (guitarra, violão), alínea, alkohol, almanak, âmbar, amplop
(envelope), keju, klab (clube), koléga, anagrama, cokelat (chocolate), dadu
(dados), bola, apotik (botica, farmácia). Há muitas outras, mas a lista seria
exaustiva. Não fiquei surpreso, mas interessado.
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Amplop |
Eu
sabia que os portugueses haviam sido os primeiros europeus a chegar às ilhas da
Indonésia — isso em 1512. A ânsia lusitana pra dominar as fontes do lucrativo
comércio das especiarias, nos séculos 15 e 16, e os seus esforços missionários
cristãos simultâneos, resultaram no estabelecimento de fortalezas e entrepostos
comerciais, e de um forte elemento cultural português que permanece na
Indonésia até aos nossos dias. E isso fica claro no idioma.
Desde
as minhas descobertas idiomáticas e da minha sensação de regressão analfabeta,
fiquei pensando que, se fosse honestamente instruído, seria possível recuar no
derradeiro instante, decidindo por não tomar contato com o mundo esotérico,
exótico, sanguinário e selvagem das pessoas que sabem ler e escrever. Pelo
menos em indonésio. Até porque o analfabeto tem pelo menos uma virtude: não
comete erros gramaticais ou ortográficos.
Também
penso que o alfabeto foi inventado por um analfabeto. Ah! E o mundo abunda em
alfabetos fora de uso, cujo código se perdeu —além dos povos que nunca tiveram
alfabetos e mesmo assim foram felizes, como os nossos índios e os ingleses e
norte-americanos (estes dois últimos adotaram o alfabeto romano e dominaram
basbaques do planeta inteiro e que tinham alfabetos próprios).
Antigamente, os
analfabetos eram os seres que não iam à escola; agora, são os mais escolados. E
descolados. Analfabetos, graças a Deus!
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Luca Maribondo |
*Luca Maribondo é um grande amigo, aventureiro das lides jornalísticas e publicitárias, que conheci em Mato Grosso do Sul, priscas eras. Luca cansou destas plagas e cumpre um período sabático em Bali. Cronista inveterado, observador das coisas cotidianas, toda vez que bate um banzo, ele escreve. De vez em quando, falamos. E quando ele me manda sua escrita, sempre tenho vontade de dividir com todos.
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