Eu tinha quinze anos quando pisei sozinho as pedras de cantaria da minha ilha. Foi ali que comecei a me entender por gente. Com gostos e dissabores. Com alegrias e vazantes. Feito banzeiro bravio, aventura de barco em mar aberto. Assim mesmo. Dei de assombro com o passado e enfiei o dedo na cara do futuro.
Vi e vivi ali minhas primeiras dores. Meus primeiros sorrisos largos. A distância e a proximidade dos meus amores. Descobertas de um corpo juvenil exposto à força dos atabaques e ao som dos tambores. Naquele instante. Creio também ter sido ali, bem ali, a descoberta do vigor da poesia, razão de ser de minha vida. Aos quinze, eu fui dono do mundo. E, até ali, o mundo era minha ilha.
Eu ia, cúmplice das estrelas, sem medo algum, de um extremo ao outro. Guiado apenas pelo astrolábio contido em meus olhos. No ritmo ligeiro de meus pés meninos. Do Beco do Seminário eu me lançava. Atravessava a cidade até ser acolhido pela Madre D’eus.
Não havia relógio. Havia solidão, descoberta e beleza em meu caminho. Havia a certeza de conhecer o desconhecido. Havia harmonia no meu andar. Era eu, homenino livre, revivendo o que vivi apenas em pensamento e saudade. Minha volta era também o resgate de um tempo subtraído sem que eu tivesse deixado.
Uma noite, já bem tarde, eu voltava pra casa com o coração transbordado de história. A rua inteira dormia. E eu, acordado. Deixo a Rui Brabosa, pego o Beco do Gavião, a Rua de São Pantaleão, atravesso a Avenida Kenedy, cruzo o Hospital Português, avanço a Rua Grande, a do Sol e a faculdade de Farmácia. Chego ao Largo de Santo Antônio, Madre D’eus ficou pra trás.
Noite alta. Pego a reta do Beco do Seminário onde a casa de meu tio Zé era também minha casa. No silêncio, o toc toc do meu chamató no chão brilhoso de pedra marcava o compasso e espantava qualquer visagem. De repente, meus olhos avistam um vulto com meio corpo debruçado na janela de minha casa.
Me aproximo cuidadoso. Era meu avô, Opílio. Trocamos um olhar silencioso. Eu carregava a alegria de vê-lo. Ele, o alívio de saber do meu paradeiro. Nunca vou saber se ele teve ideia do tanto dele que havia em mim. Do destemor com que ele me impregnou a alma. E que me fez ser um bocado como ele. Muito do que sou.
Ele perguntou se aquilo eram horas de eu estar na rua. Respondi que eu vinha da Madre D’eus e nem tinha relógio. Foi quando ele soltou uma frase enigmática, quase um resmungo, uma conversa em voz alta consigo mesmo que eu, talvez, nem devesse escutar. – Até estas horas na rua... Este menino já deve conhecer o segredo das mulheres.
Homem de poucas palavras, abriu o portão, me botou pra dentro, me deu um abraço e me abençoou. Quem disse que eu consegui dormir? A noite avançou pro dia. Aquela frase ficou ecoando em minha mente. Eu era só um menino. Ousado e desbravador. Foi a primeira vez que ouvi dizer que as mulheres tinham um segredo. Eu não fazia ideia, mas meu avô tinha certeza de que eu já sabia.