domingo, 7 de maio de 2023

De frente pro mundo

Meu avô, Opílio Viégas, e eu. 

Eu tinha quinze anos quando pisei sozinho as pedras de cantaria da minha ilha. Foi ali que comecei a me entender por gente. Com gostos e dissabores. Com alegrias e vazantes. Feito banzeiro bravio, aventura de barco em mar aberto. Assim mesmo. Dei de assombro com o passado e enfiei o dedo na cara do futuro. 

Vi e vivi ali minhas primeiras dores. Meus primeiros sorrisos largos. A distância e a proximidade dos meus amores. Descobertas de um corpo juvenil exposto à força dos atabaques e ao som dos tambores. Naquele instante. Creio também ter sido ali, bem ali, a descoberta do vigor da poesia, razão de ser de minha vida. Aos quinze, eu fui dono do mundo. E, até ali, o mundo era minha ilha.  

 

Eu ia, cúmplice das estrelas, sem medo algum, de um extremo ao outro. Guiado apenas pelo astrolábio contido em meus olhos. No ritmo ligeiro de meus pés meninos. Do Beco do Seminário eu me lançava. Atravessava a cidade até ser acolhido pela Madre D’eus.

 

Não havia relógio. Havia solidão, descoberta e beleza em meu caminho. Havia a certeza de conhecer o desconhecido. Havia harmonia no meu andar. Era eu, homenino livre, revivendo o que vivi apenas em pensamento e saudade. Minha volta era também o resgate de um tempo subtraído sem que eu tivesse deixado.

 

Uma noite, já bem tarde, eu voltava pra casa com o coração transbordado de história. A rua inteira dormia. E eu, acordado. Deixo a Rui Brabosa, pego o Beco do Gavião, a Rua de São Pantaleão, atravesso a Avenida Kenedy, cruzo o Hospital Português, avanço a Rua Grande, a do Sol e a faculdade de Farmácia. Chego ao Largo de Santo Antônio, Madre D’eus ficou pra trás. 

 

Noite alta. Pego a reta do Beco do Seminário onde a casa de meu tio Zé era também minha casa. No silêncio, o toc toc do meu chamató no chão brilhoso de pedra marcava o compasso e espantava qualquer visagem. De repente, meus olhos avistam um vulto  com meio corpo debruçado na janela de minha casa.

 

Me aproximo cuidadoso. Era meu avô, Opílio. Trocamos um olhar silencioso. Eu carregava a alegria de vê-lo. Ele, o alívio de saber do meu paradeiro. Nunca vou saber se ele teve ideia do tanto dele que havia em mim. Do destemor com que ele me impregnou a alma. E que me fez ser um bocado como ele. Muito do que sou. 

 

Ele perguntou se aquilo eram horas de eu estar na rua. Respondi que eu vinha da Madre D’eus e nem tinha relógio. Foi quando ele soltou uma frase enigmática, quase um resmungo, uma conversa em voz alta consigo mesmo que eu, talvez, nem devesse escutar. – Até estas horas na rua... Este menino já deve conhecer o segredo das mulheres. 

 

Homem de poucas palavras, abriu o portão, me botou pra dentro, me deu um abraço e me abençoou. Quem disse que eu consegui dormir? A noite avançou pro dia. Aquela frase ficou ecoando em minha mente. Eu era só um menino. Ousado e desbravador. Foi a primeira vez que ouvi dizer que as mulheres tinham um segredo. Eu não fazia ideia, mas meu avô tinha certeza de que eu já sabia.  

segunda-feira, 1 de maio de 2023

O Silêncio



O nada anda ao redor do meu ouvido

Não ouço o nada ao redor

E ainda assim

há um barulho ensurdecedor

como se fosse o silêncio

falando em voz alta

das horas que antecedem o sono

Resta um sussurro manso

Respiro o som do suspiro

Dormir acalma as horas

A tinha sonora dos sonhos

Embala o que não cabe na fala.


Do meu livro "Capsulas de Oxigênio"

 

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Ventos Salgados

Por Inorbel Maranhão Viegas




Vem de longe essa minha idade. 60 anos. Vem de útero. Do encontro primeiro do que são meus pais e me tornou resultado de ato de amor.


Certa feita, descobri à mesa, entre amigos mais experientes que eu, um Primitivo de Mandúria, sessentani. Lembrei-me agora da surpresa interior que me invadiu. Talvez, como nunca antes. Foi, de fato, o primeiro encontro da minha alma com um sabor de um vinho desenhado à mão. Tomou-me o corpo um misto de prazer, encanto... um certo “não sei o quê”, típico das primeiras vezes. Sensações daquelas que se tornam eternas. Indeléveis tatuagens marcadas no espírito.


Pois, ontem, experimentei outra vez. Não um Primitivo. A sensação de viver, de ter, de estar sessentani. Não cometo a injúria de me comparar ao vinho. Não seria justo com ele. Nem com a memória dos amigos com quem comparti a mesa, naqueles idos tempos. Aquilo é único. 


Meus sessentani, antes de tudo, são meus rastros nessa vida. São o que fiz, o que faço. O que me dá existência. São o conjunto das emoções que eu vivi até aqui. Aquelas que me fazem enxergar o espelho sem ter que fechar os olhos, de medo ou vergonha. Ao contrário, resplandecem-me. 


Sorrio para as marcas que o tempo deixou. Alguma dor se vê ali – porque as dores são parte necessária da vida, de nós mesmos. Sobrancelhas desalinhadas, olhos firmes, impregnados de uma mansidão explícita e de uma coragem vulcânica que desconfio, sem que ainda tenha absoluta certeza, de onde vem. Certeza única que trago é que estão sempre ao alcance, quando o menino lhes pede a mão. E isso tem-me bastado.


Meus filhos estiveram comigo. Cada um a seu modo. Mariana foi quem veio primeiro. E ocupa lugar especial, não há como negar. Foi quem me arrancou o primeiro suspiro de pai, o primeiro sorriso, o primeiro medo real e muitos orgulhos que coleciono até aqui. Depois, Gabriel. Que tem o seu lugar único. Que me fez questionar em poesia e imagem o fato de não lhe ter percebido o passar do tempo. Quando espantei, estava maior que eu. Mas mantinha o mesmo sorriso e exigia o mesmo cuidado, o mesmo amor. 


Não faz muito, ganhei dois outros filhos e um neto. Priscila, Philipe e Ravi.  Tivesse eu feito um pedido, por escrito, revelando meu desejo de ser humano, não sei se teria feito melhor. Se teria sido mais capaz. Para Priscila guardo meu amor que acolhe e recebo de volta gratidão terna e consistente. Philipe rompe as amarras do tempo e do mar. E, lá de longe, me nomeia pai. E me comove. Pela altura do salto, pelo alcance do verbo, pela responsabilidade de ser. 


De Ravi não careço dizer nada além de que sua tradução é um amor genuíno. De criança. De menino. Uma conquista que digo sem medo – eu mereço. 


Sessentani. Minha primitiva colcha de retalhos. Cerzida com esmero por esse Deus invisível, travestido tempo/espaço/luz. Minha vida. Temperada pela cor natural do amor que me acompanha nessa jornada (e que eu desconfio já ser de muito antes), Patrícia, minha preta. 


Foi ontem. Foi como estar à mesa. Foi magnífico. E isso é tudo. 


Brasília, 21/08/2022


terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A vida não para

O quê aprendemos em 2020? Há quem tenha centenas de respostas para essa pergunta. Há quem não tenha nenhuma. A última edição de 2020 do “Caminhos da Reportagem” lançou-se ao desafio de ir em busca de quem quisesse falar sobre a experiência de viver um ano em que a pandemia foi o protagonista e nós, coadjuvantes. 

Não por acaso, encontrou gente sofrida, gente preocupada, gente com alguma medida de medo e tristeza. A conversa reuniu no espaço de um programa uma monja, dois professores, um neurocientista, dois médicos, uma mãe e uma trupe circense. O circo deu a linha e o pensamento se encarregou da costura. Embaixo da lona, ou fora dela, a vida é sempre um espetáculo. 

E foi com a sensação de viver um espetáculo circense que as respostas foram surgindo, de forma natural e certeira. Algumas conclusões foram inevitáveis: Tudo passa. Inclusive a pandemia. E o mais importante: A vida não para. 

Ficha técnica
Reportagem: Maranhão Viegas
Produção: Gracielly Bittencourt
Imagens: Rogerio Verçosa
Edição de texto: Francislene de Paula
Edição de imagens e finalização: Jerson Portela e Rivaldo Martins
Arte: Eudes Lins



domingo, 29 de novembro de 2020

Don Diego

Capa do jornal Crônica, de Buenos Aires,
em 26/11/2020


bola de meia
bola de gude
do grude na bola
sem hora
sem meia

bola na areia
no barro
na chuva

pelota
miúda
en la calle
suscia

alejo estás ahora
mirandome
desde arriba
tu nueva morada
blanca nube
cielo azul

el mas divino
ser humano
el mas humano
ser divino

tus passos
ayer en la cancha
ahora 
bailan como
alas bienditas

 tiempo
passado
traspassado
eterno

hasta siempre!
Diego

domingo, 1 de novembro de 2020

Das horas úmidas de meu pensamento

     


As horas do domingo escorregam lá fora. Pela janela acompanho um chuvisco. Que não sabe se vai ou se fica. As horas escorregam lá fora. Aqui dentro observo a tua dor fininha, a tua alegria, a tua desvontade de fazer algo que exija mais do que sair da cama.

Minto. Quando abri os olhos de manhã, foi o cheiro de café quem me tirou do sono. Me invadiu as narinas e me trouxe de volta à vida real. Sabor de pão com manteiga invadindo uma manhã que ainda se disfarçava de madrugada.

Estavas ali. E num instante, estavas por cima de mim. Tua renda preta roçando meu peito e me chamando para levantar. Como? – eu me pergunto. Teu corpo sobre o meu é um convite para ignorar o tempo, para derreter-se em carinho e perder-se entre os lençóis. 

Um beijo. Um espreguiçamento. E o corpo se move em direção à janela. O amor em cheiros imaginários tem o seu valor. Lá fora, já desde cedo, as horas úmidas passavam. O asfalto molhado. Os pássaros aquietados. Só alguns poucos se arriscavam num canto suave e molhado. Domingo de horas passantes. Lentidades.

Então veio a mesa. Ah! Nossa mesa sempre está em flor. Pode faltar manteiga (melhor que não falte), mas não faltam flores. As flores me levam pra outros rumos. Lembram as coisas que já vivemos. Lembram as ruas floridas de Santiago, no dia em que dançamos enquanto uma orquestra jovem soltava seus acordes clássicos e populares em troca de aplausos. E nós, lá no meio, admirados e felizes, nos permitimos um tango. Que inveja sentiram alguns de nossa liberdade.



As flores tem o dom de fazer isso comigo. O leite em pó torna o café moreno. O açúcar é minha perdição. Ovos revoltos, pão. E um riso que não se mede. Sim. Essa é a fórmula de nossa mesa matinal, em um domingo de quase chuva e quase frio. E as hora lá, passando umedecidas, do lado de fora da janela.

Conto uma velha piada que te faz sorrir. Sempre. Sabe, preta, em Portugal há um grande índice de consultas aos oftalmologistas depois do pequeno almoço. E nem preciso seguir para que espalhes os teus dentes adiante do contorno dos lábios e dispares em uma gargalhada. Um muxoxo. A piada é velha. E, ainda assim, te faz gargalhar.

Falamos da vida, com suavidade e ternura. Falamos dos erros cometidos em explosões que revelam o nosso cansaço e o nosso limite. Quando, meu Deus, nos veremos livres outra vez? Não há tristeza em nossa voz. Há uma constatação firme, circunspecta, consternada de que o horizonte não nos mostra ainda um ponto final para essa dor pandêmica.

Compramos vinhos e fazemos planos. Os vinhos aplacam as dores e dão sabor à alma. Por isso, os temos e os tomamos. O que vai ser desse dia? O que vai ser desse tempo? Quem contará essa história e de que forma isso vai acontecer? Tantas perguntas sem resposta. Tanto vazio no ar para um domingo que vai deixando as horas escaparem pela janela úmida. Não sei. E não sei se saberemos.

Sei apenas que nosso barco segue lento e constante em direção ao que vai no leme de nossas cabeças. Via láctea brilhante e intensa como a que vimos deitados lá fora, no tempo, naqueles dias de Pirenópolis. Navegar impreciso. Preciso. Necessário.

 
Lembras dos pães de Bismarque? Das músicas de Chico Filho. Dos chapéus de Cabocla. Lembra? Por favor, não esqueças. É a memória desse tempo que ainda nos manterá vivos e eternos.

Na mesma da hora, quando a chuva deu uma trégua e a janela se iluminou com uma nesga de sol, era o sinal: Caminhamos?



sábado, 24 de outubro de 2020

O mundo é uma bola


 

Em 1970, eu tinha oito anos. Lembro vivamente a imagem de um homem magro, calçando um Conga (uma das poucas marcas de calçados esportivos à época no Brasil), calção azul e camiseta regata amarela, correndo pelas ruas da minha Madre Deus, com uma bandeira do Brasil nas mãos. 

 

Olhei intrigado. Intrigação de menino. Por que ele está fazendo isso? Perguntei à minha avó. Pelé. Ela respondeu. E seguiu falando, depois de uma pequena pausa. Pelé ganhou a copa do México. Era 1970. E eu nunca esqueci aquela cena. 

 

Depois, acompanhei ao largo, encantado como um súdito, a trajetória do Rei do Futebol. O mais legítimo que o Brasil já teve. Fazia com a bola o equivalente ao que Platão, Sócrates e Nietsche fizeram com o pensamento. Um Einstein dentro das quatro linhas da relatividade futebolística. 


Foto: Assessoria CBF
Foto: Arquivo CBF

Faz oitenta anos que ele nasceu para ser rei na eternidade. Neste 23 de outubro, todos se rendem à evidência que seus pés comprovaram, cada vez que a torcida assistindo a um espetáculo gritou “gol de Pelé”: o mundo é uma bola.  


quinta-feira, 25 de junho de 2020

Diário de pandemia - Nossa língua portuguesa

Moisés Rabinovici
Já faz algum tempo, meus dias começam com o Moisés Rabinovici me enviando, pelo WhatsApp, as manchetes diárias dos jornais do exterior. Rabino (como a intimidade recém conquistada me permite chamá-lo) é um correspondente internacional de longa vivência e expert em Oriente Médio, que tornou-se próximo a mim por conta do trabalho conjunto, na TV Brasil.

Além de traduzir as manchetes internacionais ele as contextualiza, nos fazendo acreditar ainda mais numa versão pessoal do dito popular que sentencia: "Para bom entendedor, uma manchete basta".

Pois hoje, entre as tantas manchetes enviadas estava a da edição impressa do jornal português "Diário de Notícias".

"PAÍSES ENCOSTADOS AO TURISMO VÃO PASSAR AS PASSAS DO ALGARVE"

Li e reli sem encontrar o sentido. Corri os olhos para o restante do texto e percebi que o Rabino, prevendo a falta de entendimento, traduziu a manchete do português de Portugal para o português brasileiro.

"PAÍSES QUE DEPENDEM DO TURISMO PASSARÃO DIFICULDADES ECONÔMICAS" 

Na hora, mandei-lhe uma mensagem:

Querido Moisés Rabinovici. Sua providencial tradução do português de Portugal para o português do Brasil é um pequeno exemplo do oceano que distancia nossa “Língua Pátria” da língua da nossa “Pátria avó”.

Passa um tempo e ele me devolve a escrita: "Pro rádio, ninguém entenderia a manchete do Diário de Notícias, sem tradução. Trabalhei, quando no Oriente Médio, para a rádio portuguesa Renascença. Lá eles me apresentavam, para não passarem vergonha, como o "Brrrasileiro do Medio Oriente". Todo dia recebia da produtora as mancadas que tinha dado. "Seu burro: reunião de cúpula é cimeira; israelense, iasraelita; palestino, palestiniano...". Participava de um programa de entrevistas aos sábados com um título ótimo: "De Fio a Pavio".

São essas diferenças que nos tornam únicos. Nos distanciam e, ao mesmo tempo, nos remetem à nossa origem mesma. Filhos nascidos de uma só raiz.

sábado, 13 de junho de 2020

Diário de Pandemia - Crônica de sexta 12.06.2020

O amor prevalecerá. 
Nas coisas mais simples. 
Um café com pão e manteiga. 
Um sorriso por trás das máscaras. 

Um afago. 
Um carinho. 
Um cuidado. 

O amor prevalecerá no abraço, 
depois que o isolamento passar. 
O amor prevalecerá 
porque esta é a condição humana. 
Amar. 

Não fosse isso, seríamos nada. 
Seríamos o vazio existencial. 
A terra seria estéril.
E dificilmente, haveria pólen suficiente para 
o labor indispensável das abelhas.

Por isso, e porque não há o que justifique 
alguém no mundo nascer para a solidão, 
o amor prevalecerá. 
Ponto inicial. 

sábado, 6 de junho de 2020

Diário da Pandemia - Crônica de sexta 06.06.2020

Cronica de Sexta, escrita originalmente para o Repórter Brasil, da TV Brasil. Todas as imagens foram captadas por um i-phone 7, entre os dias 01 e 5 de junho de 2020. O texto contrapõe a pressa do tempo e a lentidão das horas. A edição é de Carlos Aguiar (Bazooka).