Innocêncio Viégas Além da esposa e dos filhos, todos nós temos outra paixão por alguma coisa.
Quando menino, nos meus seis ou sete anos, eu ficava horas olhando o meu pai amolar as suas ferramentas. A mamãe me dizia que o velho, quando estava preocupado com algo, ou triste, ou mesmo zangado com algum dos seus trabalhadores, pegava suas facas, machado, facão e até a velha enxada e ia para o fundo do quintal onde havia a “pedra de amolar” e ficava um bom tempo a amolar, amolar e eu lá olhando e fazendo as perguntas que todo menino faz ao pai. Por quê?
Aqueles momentos ficaram gravados em mim.São as minhas ricas lembranças. Cresci, me fiz jovem, rapaz e homem maduro. Agora sou um idoso vivendo os bons momentos da terceira idade, amolando também as minhas imaginárias ferramentas enquanto chega a quarta idade, se é que ainda vai ser criada.
Certo dia – vagamundeando – encontrei em uma banca de revista, um exemplar da revista Magnum, falando sobre facas. Logo adquiri a revista e fui correndo para casa “degustar” com os olhos, aquela preciosidade.
Era o ano de 1990 e a revista endeusava a faca Bowie por ser ela a mais famosa de todas as facas. Folheando gostosamente a revista, entre mil facas encontrei a faca dos meus sonhos: uma Zakharov. Ela é criação do russo Piotr Zakharov que se naturalizou brasileiro. Essa faca é de uso quase obrigatório em vários países, nas forças armadas e nas policias. São caras, e isso me impediu de comprá-la.
Um belo dia, voltando para casa, a Bel, pelo celular, pede que eu compre um saco de adubo para as nossas plantas.
Antes de entrar no “Pólo Verde”, local de revenda de plantas, adubos e tudo para jardinagem, vi uma tenda com uma faixa que dizia: Cutelaria. Pronto, a faca apareceu logo em minha mente e vi papai amolando as suas ferramentas.
Adubo comprado, fui à tenda. Dezenas de belas facas e cutelos de todas as qualidades.
Logo perguntei pela Zakharov. O vendedor, um senhor de meia idade, bem disposto e alegre levou-me ao outro compartimento da tenda e lá estavam as “dondocas” enfileiradas e atraentes. Ele passou a descrever nomes, tamanhos e utilidades de cada uma delas.
Apaixonado por todas, “gamei” na tradicional, uma faca de quase dez polegadas de lâmina. O preço? Ah! O preço, a ninharia de duzentos e oitenta e cinco reais. Paguei com dois cheques, peguei a bonitona e sai com o meu presente de aniversário dos meus setenta e três anos.
No primeiro domingo, com os filhos e boa parte dos netos em casa, fui inaugurar a faca em uma gorda picanha. Parecia que eu estava cortando um tablete de manteiga. Uma sensação gostosa. Não me contive e fui mostrar à Bel, aos filhos, noras , genro e netos. O Isanor, com o Dudu no colo, achou linda e perguntou o preço. Falei baixinho para a Bel não ouvir senão a briga seria feia e a faca poderia até perder o “fio”.
Isanor repetiu o valor, bem alto, com toda admiração. Todos ficaram curiosos. A Paulinha se admirou tanto com o custo que eu tremi. A turquinha Andréa arregalou os olhos e ficou sem palavras, achando muito cara.
Diante de tanta admiração pela faca e o espanto pelo preço, o netinho Dudu,nos seus quase dois anos, sorrindo, falou:
Vovô é doido!Todos riram. O pai lhe repreendeu. A Bel veio saber o que acontecia e viu a faca e também gostou e não brigou comigo. Fui salvo pela sabedoria oportuna do Dudu. Em vista disso tudo, faço desta crônica o meu testamento para dizer que esta faca Zakharov tradicional – C – 56869, de nove polegadas e três quartos de lâmina, será destinada ao Dudu, quando do meu passamento, a critério dos seus pais e na idade devida para usar facas.
Passado o susto, fui degustar um bom vinho e fazer os meus bifes gordos e sangrando o suco vermelho da gostosura. Só aí pude concordar com o meu netinho Dudu, que na sua inocência e diante de tanto espanto, sentenciou o que todos da família já sabem... Vovô é doido! E eu acrescentaria: Doido por vinho, por uma gorda picanha e por faca Zakharov!
Innocêncio Viégas é meu pai. E é escritor – Teólogo - Membro da Academia de Letras de Brasília. Ele resolveu inaugurar assim, com esse texto, a visita ao meu blog. E a partir de agora, pode fazer isso sempre que quiser, do jeito que quiser. Será sempre uma honra pra mim. Além do mais, como eu aprendi a dizer lá em casa, depois que o meu pai se formou em teologia: "o senhor é meu pastor..." A
Bel, que ele fala no texto, é a companheira dele por quase 50 anos.
E minha mãe.
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