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Foto: Kurt Arrigo |
São seis da manhã e ainda é escuro lá fora. Resultado do
horário de verão, ao qual meu relógio biológico costuma desobedecer numa
rebeldia civil permanente. Acordo e não quero ver o noticiário. Porque ele está
cheio de lama. Brumadinho não é Mariana. E não será leve.
A lama, aliás, assume por esses tempos o sentido mais
explicito da imagem deste país. Para onde quer que se olhe, há lama. E, não
raro, ela insiste em vazar de seus frágeis reservatórios, morro abaixo, espalhando
um rastro imensurável de destruição e dor.
Ando farto de dor. Busco um limite que me permita avançar
sem perder o rumo. Sem perder a graça.
Recorro a um presente que recentemente ganhei de meu pai. “Úrsula”.
Um exemplar da série “Prazer de ler”, editado pela Câmara dos Deputados. Sim,
para decepção dos rasos e ignorantes, a Câmara dos Deputados, tal qual um
conjunto importante de outras instituições públicas, não produz só corrupção e escândalos.
Produz conhecimento de alta qualidade, também. Poucos dão valor a isso, é
verdade. Mas é real e inegável.
A publicação original deste livro aconteceu em 1859. É, fico
sabendo, o único romance abolicionista de autoria feminina em todo o mundo
lusófono naquele período. Escrito por uma negra que não teve acesso à educação
formal. Uma autodidata, portanto. Maria Firmina dos Reis nasceu de uma relação
ilegítima em 1822, não conheceu o pai, mas nem por isso deixou-se levar pela
tragédia. Maranhense, fez o caminho inverso ao que se costuma ver. Deixou São
Luis em direção ao interior. Foi viver em Guimarães, foi ser professora, foi
ser alguém muito à frente do seu tempo. E assim sendo, foi-se. E assim sendo,
ficou para sempre.
Resgatada agora, sua escrita destoa pela cor de sua pela
original e pela consistência em resistir ao preconceito, pela insistência em
romper limites. Isto, priscas era, no Século XIX.
Interrompo a leitura para atender outro chamado do meu
relógio biológico: Hora do café. Ah, delícia de meus dias. Café. Não só o prazer
de tomar. Me seduz o preparo. A água fervente na chaleira, o pó à espera no
coador, o chiado da água, o barulho fino da transformação, o café invadindo a
garrafa térmica, aquele cheiro de manhãs completas tomando a cozinha, o quarto,
a sala, a casa toda. Café!
Penso nas coisas que me dão alegria. A contradição de ser
alegre fazendo notícia. Duvida? Mesmo nestes tempos sombrios é possível. Mesmo
com toda trama, com todo drama. Mesmo tendo de estar atento para as sabotagens
do inimigo íntimo, do que vive ao lado, do que nos espreita mais do que cuida
de sua vida. Mesmo assim.
O jornal de sexta, por exemplo. A dor de contar a tragédia
da lama em Brumadinho exigiu de todos nós atenção e zelo. Exigiu capacidade de
decidir em curto prazo. E exigiu decisões precisas, sem chance de erro. Num instante
aquela redação passou de um conjunto de indivíduos dispersos e tristes a uma
orquestra sinfônica em perfeita harmonia. (Tá bem, nem tanto assim – uma orquestra
menor, de Câmara, vá lá, mas sem espaço pra erro e sem medo de tocar.)
O resultado, no ar, não traduz nem de longe as dificuldades
técnicas e operacionais que vivemos. Ao contrário disso, dá ao telespectador a
sensação de que uma estrutura gigantesca produziu aquilo. Assim, somos gigantes
sem ser. Assim, atravessamos o mar de dúvidas e incertezas que nos transforma
em ilha ameaçada de mar, prestes a submergir num oceano de desconfiança. Ou,
quem sabe, a resistir como ponto de fuga em mar revolto. Assim, encontramos
alegria de fazer, mesmo acerca dos que só imaginam haver espaço para amargura.
Pão com manteiga, café forte e quente, verde na janela e
passarinho cantando lá fora. O tempo nublado é preguiçoso por natureza. A
preguiça de me mover só não alcança meus dedos no teclado do computador. O
tempo nublado é preguiçoso. E eu recorro à correspondência para fugir à tragédia
cotidiana.
Porque hoje é domingo. E porque a vida insiste em vir em ondas,
como o mar. Desde muito antes de Vinícius se dar conta disso.
Brasília, 27 de janeiro de 2019.